quinta-feira, 6 de outubro de 2016

A Esquerda Libertária

A Esquerda Libertária
por Uriel Alexis

Em essência, a proposta da esquerda libertária é que a causa da igualdade social não está dissociada da causa das liberdades individuais. Há níveis de radicalismo nessa associação, desde uma incompatibilidade mínima a ser resolvida de forma pragmática através de regulamentações (os liberais americanos modernos), passando por uma identificação mínima em que liberdade e igualdade são compatíveis, desde que não sejam extremadas, até uma identificação total, onde liberdade e igualdade são indistiguível uma da outra. O texto do Valdenor é uma boa introdução, quanto a esse espectro. Eu, particularmente, defendo que a única igualdade social possível é idêntica e indistinguível da garantia de direitos individuais de propriedade - ou seja, sou um dos radicais.

A partir disso, o tema da economia de mercado enquanto ferramenta para a melhoria das condições de vida, especialmente das pessoas mais desfavorecidas, obviamente se sugere. Essa é a posição mais geral entre os que se identificam como BHLs, anarquistas de mercado, left-libertarians, mutualistas ou anarquistas individualistas. Seu argumento central é que, na medida em que as riquezas produzidas pelas pessoas não seja sugada através de regulamentações, impostos e outras intervenções estatais na economia de mercado, as rendas tendem a se equalizar e as pessoas podem viver com maior qualidade de vida e de forma mais autônoma. Há pelo menos uma ala, das cinco identificadas pelo Valdenor, que não crê que isso seja sequer possível, a saber, os anarquistas comunistas e demais coletivistas na tradição de Kroptkin e Bakunin. Esta identifica os processos de extração de riqueza com a propriedade individual dos meios de produção, e visa organizações comunitárias independentes para organizar a produção sob bases mais justas, sem propriedade privada. Já escrevi anteriormente sobre como tais posturas aparentemente antitéticas podem se auxiliar, rumo a uma maior autonomia. Apesar das diferenças, a análise do estado enquanto um mecanismo criador de desigualdade (ao invés de equalizador) também é ponto pacífico dentro da esquerda libertária.

Como obviamente nossa sociedade se propagandeia como tendo uma economia de mercado, ou capitalista, e, obviamente, o arranjo atual não é nem de longe igualitário, aqueles que assumem uma postura pró-propriedade fazem uma distinção entre capitalismo (o arranjo atual, de privilégios legais e subsídios diretos e indiretos concedidos a grandes empresários pelo estado) e a economia de mercado em si (os arranjos puramente voluntários - isto é, consensuais - entre indivíduos, através de contratos). O que a esquerda libertária entende como ferramenta de melhoria das condições de vida e de equalização é este último, que também é visto como uma ferramenta contra os interesses centralizadores e dominantes do primeiro (ou seja, um livre mercado anti-capitalista).

Dentro desse paradigma, empreende-se uma análise histórica e social do surgimento e da manutenção do capitalismo (sempre necessariamente capitalismo de estado) como uma empreitada violenta contra as pessoas. A hierarquia social resultante desse arranjo (embora não necessariamente toda e qualquer hierarquia) é vista como inerentemente injusta, dentro de um sistema moral que vê o consentimento como único legitimador possível.  Outros temas também se inserem nessa análise sistemática, em especial a relação de outros sistemas de opressão (racismo, lgbtfobia, patriarcado, xenofobia, etc.) com o estado e o capitalismo.

As possibilidades tecnológicas de descentralização do poder (o que cria um mecanismo de mercado para o próprio poder político) são também temas que ganham proeminência, abrindo uma relação com outras filosofias políticas contemporâneas como o aceleracionismo e o autonomismo. Uma preferência por modos de vida de menor escala (entendidos como mais autônomos e, portanto, menos dependentes da estrutura do estado nacional) abrem relações com as críticas à civilização ocidental (e talvez à própria civilização enquanto modo de vida).

5 Definições para Libertarianismo de Esquerda, ou Esquerda Libertária, ou Ala Esquerdista do Libertarianismo

5 Definições para Libertarianismo de Esquerda, ou Esquerda Libertária, ou Ala Esquerdista do Libertarianismo

1) Left-libertarianism como a ala mais esquerdista dentro dos libertários pró-mercado: são anarquistas individualistas de mercado de esquerda, que defendem o livre mercado, se dividem principalmente entre mutualistas pró-mercado (defendem que a apropriação da terra só existe enquanto há uso e posse, e o cooperativismo como forma de organização econômica) e rothbardianos de esquerda (principalmente ligados ás concepções agoristas, e à ideia de um livre mercado tendendo espontaneamente para menos trabalho assalariado), mas também há os georgistas (defendem um imposto sobre a terra nua cuja receita subsidiará uma renda básica para todos). Uma importante concepção aqui é o chamado agorismo, que é um anarquismo de mercado revolucionário, defende a contra-economia como forma de desmantelar o Estado e a economia de grandes corporações protegida por ele. Um outro nome da corrente é anticapitalismo de livre mercado, pois o 'capitalismo' é considerado igual ao 'capitalismo de compadrio', apenas mais uma fase de exclusão econômica baseada no poder estatal.

2) Left-libertarianism como teoria da justiça: Em teoria da justiça, 'libertárias' são as teorias da justiça que assumem que a distribuição justa é conferir àquele que produziu o produto de sua produção e que transferências desses produtos de umas pessoas para outras são justas se feitas voluntariamente. A versão padrão, de Nozick, assume que ninguém produziu a terra e os recursos naturais, mas que estes estão sujeitos a uma apropriação em caráter definitivo, desde que satisfeita a ressalva lockeana (ninguém ficar pior), o que seria alcançado pelos efeitos gerais do sistema de propriedade privada que deixam todos melhor do que numa situação sem propriedade privada; portanto, toda redistribuição seria ilegítima. Os left-libertarians concordam que tudo o que alguém produz é seu por direito, mas rediscutem essa questão da apropriação da terra e da ressalva lockeana, pois consideram que a terra e os recursos naturais, por não terem sido produzidos por ninguém, são de posse comum de toda a humanidade, e, por isso, a apropriação delas por alguém deve ser compensada à comunidade por meio do pagamento de um tributo sobre o valor da terra nua. Dessa forma, eles justificam a redistribuição. Eles são conhecidos também como geolibertários.

3) Esquerda libertária no sentido de socialismo libertário: É um termo por si só polissêmico, mas que abrangeria principalmente os anarquistas clássicos, que defendem um socialismo sem Estado. Aqui pode ir desde os mais coletivistas bakunianos, até os neomutualistas que adotam o cooperativismo mas com uma retórica anti-mercado, e passar para anarquistas individualistas que não sejam de mercado. Ou seja, são os anarquistas tradicionais mesmo, anti-autoritários.

4) BHL: bleeding heart libertarians, isso quer dizer libertários sentimentais. O nome é uma ironia com o modo como a direita americana chama sua esquerda pelo modo como esta se preocupa com minorias, pobres, etc. (de bleeding heart, sentimental) Em um sentido amplo, BHL engloba também os left-libertarians no sentido do tópico 1, foi criado por um deles inclusive (Roderick Long, que é rothbardiano de esquerda). Mas no sentido estrito que se tornou o mais comum, trata-se de uma forma de liberalismo ou libertarianismo acadêmico que defende conjuntamente a liberdade individual, inclusive econômica robusta (como os liberais clássicos), e uma concepção de justiça social (como os liberais 'igualitários', em geral que são liberais sociais mais estatizantes). O nome mais acadêmico dessa vertente seria liberalismo do Arizona (pela maioria dos seus expoentes estarem de algum modo ligados ao Departamento de Filosofia Política da Universidade do Arizona) ou liberalismo novo-clássico, que é usado por alguns deles em livros. Então, ela entra na discussão de Teoria da Justiça que falamos no tópico 2, e desafia a Teoria da Justiça libertária a se aproximar mais da igualitária e a Teoria da Justiça igualitária a se aproximar mais da libertária. Só que a concepção dos BHLs de justiça social em geral não defende que a distribuição de renda melhor é a mais igualitária na medida do possível, mas sim aquela que atende uma condição de suficiência (todos tem acesso suficiente a bens básicos) ou de prioridade (é preciso priorizar a melhora de quem está pior). Eles valorizam o crescimento econômico como uma forma de maximizar a riqueza dos menos favorecidos, o que beneficiaria mais a estes do que uma economia estacionária onde apenas se redistribui a renda. Alguns defendem um neo-rawlsianismo, outros o liberalismo da razão pública, outros aderem a alguma forma de pluralismo consequencialista, e assim por diante. A esmagadora maioria dos BHLs são liberais que defendem a existência de um governo limitado que assegure uma renda mínima, e com mais um ou outro detalhe. Em teoria, podem ser anarquistas de mercado também, mas o máximo que já vi é a defesa de que alguns tipos de Estado e alguns tipos de anarquia bem-ordenados são justificados, ou seja, que o Estado não é necessário mas é permitido assim como uma anarquia bem-ordenada, e a anarquia bem-ordenada justificada envolveria alguma renda mínima. Eu os considero também uma forma de liberalismo social menos estatizante.

5) Liberais sociais, liberais à esquerda: Podem englobar os BHL, mas no sentido mais amplo englobam um tipo de liberalismo que, na versão ativista, acaba sendo consideravelmente mais estatizante, e, na versão acadêmica, defende teorias de justiça de viés igualitário atenuado, como Rawls, Dworkin, Amartya Sen, etc. A versão acadêmica é conhecida como liberalismo igualitário. A ideia de muitos deles é que a liberdade econômica não pode ser defendida junto com uma ideia robusta de justiça social, mesmo que eles em geral aceitem uma economia de mercado relativamente mais livre que a aceita por social-democratas, por terem uma avaliação positiva da ideia de mercado, mesmo que com algumas ressalvas. Mas é importante lembrar que parte dos liberais sociais ou de esquerda estão se aproximando do BHLismo, no sentido de defender uma política econômica mais explicitamente pró-mercado, ao questionar o papel do Welfare State em promover exclusões.