quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Autonomia Individual e Auto-Determinação

Autonomia Individual e Auto-Determinação


Resposta a Wayne Price. “Kevin Carson’s Revival of Individualist Anarchist Economic Theory”, Anarkismo.net, 30 nov. 2014.


O resumo geral de Wayne Price da minha abordagem em Estudos em Economia Política Mutualista (também disponível online) é bastante imparcial e justa (ao contrário de alguns outros, por exemplo, a crítica à Markets Not Capitalism, ed. por Charles Johnson and Gary Chartier, feita por Magpie Killjoy do Crimethinc - vide a réplica de William Gillis). Ele começa com uma espécie de elogio sobre minha análise do capitalismo nas duas primeiras seções do livro:


Kevin Carson está tentando ressuscitar a teoria econômica anarquista. Isto é interessante, porque a maior parte da economia política anarquista atual é especulação sobre uma economia pós-capitalista e pós-revolucionário - com o que ela se pareceria e como poderia funcionar. Há pouco ou nada de uma análise sobre como o capitalismo dos dias de hoje funciona. Para isso, a maioria dos anarquistas ou se apoiam em uma variedade da economia convencional (pró-capitalista) ou olham para aspectos do Marxismo.


E ele aceita - ao invés de estipular a contragosto - a natureza essencialmente não-capitalista do modelo de mercado que eu proponho.


Kevin Carson apresenta o anarquismo individualista como pró-mercado mas anti-capitalista e mesmo "socialista". Ele rejeita o programa "anarco-capitalista" de corporações capitalistas (com trabalhadores contratados por salários) mas sem um estado. Uma (hipotética) economia mutualista poderia incluir pequenas empresas, lojas, oficinas, cooperativas de consumidores e fazendas familiares. Em vez de trabalhadores contratados, as empresas seriam democraticamente administradas por seus membros (cooperativas de produtores). Os bancos seriam uniões de crédito (bancos cooperativos). Essas empresas todas concorreriam livremente no mercado aberto. Não haveria qualquer regulamentação estatal, ou sequer estado. A "justiça", ou pelo menos a paz civil, seria mantida através de arranjos em sua maior parte locais por parte de cidadãos armados.


Isso seria uma economia produtora de mercadorias, mas não capitalismo, mesmo para padrões Marxistas. Não haveria nenhuma classe separada de pessoas que seriam donas do capital, tampouco haveria uma classe especializada de trabalhadores sem propriedade que tivessem que se alugar para os capitalistas a fim de viver.


A bem da honestidade, eu deveria mencionar que a propriedade cooperativa de ativos produtivos em empresas multi-trabalhador não seria realmente obrigatória em meu modelo, tampouco a contratação de trabalho por salários seria proibida (como no sistema de David Ellerman, que automaticamente atribui a reclamação residual aos trabalhadores). Eu o vejo, sim, como uma abolição do "sistema salarial", no sentido de que o trabalho contratado não mais definiria estruturalmente o sistema como o faz no nosso. Com o acesso privilegiado da classe econômica dominante aos meios de produção abolido e removidas as barreiras legais que atualmente mantém a escassez artificial e as despesas dos meios de produção para as pessoas trabalhadoras, eu acredito que haveria muito menos trabalho assalariado, ele seria uma parte marginal do sistema e, onde ele de fato existisse, seria essencialmente não-explorador, na medida em que as deduções de renda, lucro e juros dos salários do trabalho decairiam a quase nada e o poder de barganha aumentado do trabalho daria aos trabalhadores uma voz muito mais forte sobre suas condições de trabalho. Mesmo com patrões e trabalho assalariado nominais, as empresas com empregados assalariados assumiriam, em grande parte, o caráter de facto de cooperativas auto-geridas, com o dono sendo pouco mais do que um co-trabalhador, cujo "lucro" equivale a um "salário de superintendência".


E, ao passo que expressa uma série de reservas menores ou maiores sobre tal modelo de mercado não-capitalista e cooperativista, Price está bastante disposto a tolerá-lo como um arranjo dentro de uma sociedade pós-estado pluralista.


Eu não teria objeções a alguma comuna ou região que experimentasse seu programa orientado ao mercado. Isto está de acordo com o pluralismo experimental de Errico Malatesta… e com o apoio do próprio Carson a uma "panarquia" pluralista.


Não obstante, a tradição do próprio Price se encontra com "o anarquismo socialista revolucionário de luta de classes de Bakunin, Kropotkin, Goldman e Makhno, os anarquistas comunistas e os anarquistas sindicalistas...".


A primeira crítica de Price ao meu modelo de mercado é que, embora seja não-capitalista, "não é uma visão social muito democrática".


Assumindo que funcionasse, os membros da comunidade não fariam decisões gerais sobre como desenvolver sua sociedade; isto seria decidido por empresas concorrentes respondendo ao mercado não controlado. Mesmo empresas democraticamente geridas não controlariam de fato seu próprio destino; isto seria determinado pelos sobes e desces do mercado externo.


Em resposta, eu primeiro notaria que mesmo os anarquistas coletivistas normalmente não celebram a tomada de decisão coletiva ou democrática como um bem por sua própria conta, mesmo quando nenhum acordo é necessário; em tais casos, a autonomia individual e a auto-determinação são um bem por si mesmas.


Na época em que eu escrevi Economia Política Mutualista, eu mal havia começado a investigar coisas como organização em rede, estigmergia e governança p2p. Desde então, estas coisas - que eu considero altamente democráticas - desempenharam um grande papel em definir minha concepção de democracia. Como eu argumentei em A Revolução Industrial Caseira (pt) (um argumento também central ao meu livro em progresso, The Desktop Regulatory State), se pensarmos sobre a democracia como aumento no grau em que nos aproximamos da unanimidade do consentimento, então o tipo de organização estigmérgica característico de grupos de desenvolvimento open source e da Wikipedia são a última palavra em democracia. Cada um dos projetos empreendidos tem o consentimento unânime de todos que participam dele. De fato, alguns Marxistas e comunistas libertários vêem o software open source como o cerne da futura sociedade comunista.


Segundo, se eu bem me lembro, eu pelo menos toquei na propriedade de recursos naturais enquanto propriedade comum em Estudos em Economia Política Mutualista. Se não, o tipo de gerenciamento de recursos de reserva comum sobre o qual Elinor Ostrom escreveu em Managing the Commons era definitivamente algo de que eu era a favor mesmo então. Então a produção e a determinação de preços de uma parcela considerável das matérias-primas consumidas pela comunidade maior estariam sujeitas à governança democrática.


Uma outra crítica, mais fundamental, é que eu ignoro a possibilidade de que os mercados, como tais, só possam existir com um estado.


Ele demonstra que o estado sempre interviu no mercado capitalista. Mas isto não prova que o mercado é possível sem o estado. Se qualquer coisa, pareceria demonstrar que uma economia de mercado exige um estado.


Se o estado criou o mercado, o mercado criou o estado. Um mercado competitivo e de troca de mercadorias coloca cada pessoa em conflito com todas as outras pessoas, cada firma competindo com todas as outras firmas. Ele encoraja o conflito, a miopia e o egoísmo. Ele requer uma instituição geral para manter a sociedade unida, para servir aos interesses gerais dos atores econômicos dominantes. Essa instituição só pode ser um estado.


Eu diria que aqui Price está ilegitimamente confundindo mercados, como tais, com a mediação da maior parte da atividade social através do nexo monetário. Eu admitidamente coloco menos ênfase nos mercados agora como um meio voluntário entre muitos para governar as relações econômicas do que eu o fazia na época em que escrevi Economia Política Mutualista. Estou muito mais próximo agora do que estava então de me ver como um "anarquista sem adjetivos". Eu vejo as trocas de mercado como um de tais meios, ao lado de economias sociais como da dádiva e o comunismo de unidades sociais primárias como projetos domiciliares multi-famílias, ocupas e comunas urbanas, complexos de famílias estendidas e similares. E, por causa da minha pesquisa subsequente em micromanufatura e produção alimentar em pequena escala, eu vejo uma grande parte das necessidades de consumo sendo produzidas eficientemente dentro de tais entidades comunistas, com o preço de mercado governando apenas entradas externas como matérias-primas. Mas mesmo em 2004, eu não usei os termos "livre mercado" ou "anarquista de mercado" no sentido de uma sociedade dominada pelo nexo monetário; antes, eu quis dizer com ele apenas uma sociedade que compreendesse a soma total de todos os meios de interação voluntária, livre associação e ajuda mútua - e da qual a troca de mercado não está excluída por definição.


Price também tem problemas com minha abordagem da mudança gradual sistêmica através da construção de contra-instituições, argumentando que tais instituições seriam marginais e tenderiam a ser cooptadas para uma divisão capitalista do trabalho, a menos que fossem incorporadas a um movimento insurrecionário de massa mais amplo para transformar a sociedade.


Eu tenho bastante mais a dizer sobre esta questão do que tinha em 2004. Da maneira em que o vejo, o modelo de transformação social baseado em movimentos insurrecionários de massa pressupõem a necessidade de atacar e conquistar instituições de alto comando como corporação e estado - uma "guerra de manobra" - para o propósito de ocupá-las e/ou desmantelá-las. Em suma, é um modelo da era industrial em que a massa é necessária por razões objetivas e materiais. Mas, embasado na minha pesquisa ao longo dos últimos 6-10 anos, eu acredito que mudanças na tecnologia de produção e de comunicação tornaram as antigas instituições-dinossauro da era industrial tecnicamente obsoletas e materialmente desnecessárias para o tipo de sociedade que queremos construir. Conforme as ferramentas de produção e a horticultura intensiva em solo se tornam radicalmente mais baratas em menores em escala e hiper-eficientes em seu uso de recursos, a propriedade concentrada da terra e do capital está se tornando cada vez menos um ponto de estrangulamento para a efetivação do controle sistêmico. As antigas forças estruturais como a escassez artificial e os custos de terra e capital estão perdendo seu poder de forçar a economia alternativa para dentro de uma divisão capitalista do trabalho. Em vez disso, a nova economia pós-capitalista está matando o capitalismo corporativo de fome. De fato, as correntes mais interessantes do comunismo libertário, como o modelo autonomista de Hardt e Negri em Commonwealth, sugerem um modelo de "êxodo" de produtores iguais, com base em recursos comuns, secedendo da antiga economia capitalista.


De maneira ainda mais fundamental, Price vê um mercado não-capitalista como inerentemente instável e com probabilidade de decair para o capitalismo.


Mesmo que fosse alcançado, eu duvido que o sistema anarquista individualista funcionaria por muito tempo. Competindo no mercado, seguindo a lei do valor, algumas firmas cooperativas se dariam melhor do que outras. Haveriam vencedores e perdedores. Os vencedores ficariam maiores e mais ricos, os perdedores faliriam. Um conjunto de trabalhadores desempregados se desenvolveria. Haveriam ciclos empresariais de expansões e recessões. A estratificação se desenvolveria dentro e entre as empresas. As cooperativas e famílias fazendeiras mais ficas dominariam as associações de "auto-defesa", que assumiriam o controle do policiamento. Um estado de facto emergiria.


Este argumento de "vencedores e perdedores" não é novo. O próprio Friedrich Engels o usou em Anti-Duhring, argumentando, contra a "teoria da força" de Duhring, que o capitalismo teria emergido espontaneamente a partir de um mercado pacífico mesmo sem a história de apreensão de terras e escravidão - "escrita em letras de sangue e fogo" - que Marx recontara no volume um do Capital. Eu a vi afirmada pela maioria dos anarquistas coletivistas, comunistas e sindicalistas com quem argumentais, incluindo Christian Siefkes (na lista de e-mail da Foundation for P2P Alternatives) e o editor da Anarcho-Syndicalist Review Jeff Stein (em comunicação privada).


Mesmo na época de Engels, eu acho que tais argumentos exageravam grandemente a probabilidade da riqueza se concentrar em algumas poucas mãos sob condições em que nenhuma escassez artificial garantida pelo estado existisse para permitir o crescimento da riqueza sobre riqueza através do juros composto e que o acesso generalizado à terra baldia permitisse que mesmo trabalhadores assalariados se sentassem fora do mercado de trabalho durante períodos prolongados. Mas independente disso, os argumentos pressupõem um modelo de tecnologia de produção intensiva em capital que está obsoleto agora. O barateamento radical e a efemerização da tecnologia estão tornando o próprio conceito de "vencedores" e "perdedores" sem sentido. Como eu argumentei em resposta a Siefkes em Revolução Industrial Caseira,


Uma resposta, no modelo de produção flexível, é que não há razão para se ter quaisquer perdedores permanentes. Primeiro de tudo, os custos fixos são tão baixos que é possível enfrentar um período lento indefinidamente. Segundo, na produção flexível com baixos custos fixos, na qual o maquinário básico para a produção é amplamente acessível e pode ser facilmente realocado para novos produtos, não há realmente nada como um "negócio" para se sair. Quanto menor a capitalização exigida para se entrar no mercado e quanto mais baixos os custos fixos a serem suportados em períodos de negócios lentos, tanto mais o mercado de trabalho assume um caráter em rede e orientado a projetos - como, por exemplo, a peer-production de software. No software livre, e em qualquer outra indústria em que o produtor médio produz é dono de um conjunto completo de ferramentas e a produção se concentra principalmente em projetos auto-geridos, a situação provavelmente é caracterizada não tanto pela entrada e saída de "firmas" discretas quanto por um equilíbrio constantemente alternante de projetos se fundindo e se dividindo, com agentes livres constantemente mudando de um para o outro...


Um outro ponto: em uma sociedade em que a maioria das pessoas é dona dos tetos sobre suas cabeças e conseguem atender à maior parte de suas necessidades de subsistência através da produção caseira, os trabalhadores que são donos das ferramentas de seu ofício podem se dar ao luxo de enfrentar períodos de negócios lentos e serem um tanto exigentes em esperar para serem contratados pelos projetos mais adequados às suas preferência. É bastante provável que, na medida em que alguma forma de emprego assalariado ainda existisse em uma economia livre, ela tomasse uma parte muito menor da economia total, o trabalho assalariado fosse mais difícil de encontrar e o emprego assalariado fosse muito mais marginal. Na medida em que esse emprego assalariado continuasse, ele seria a província de uma classe de trabalhadores itinerantes pegando trabalhos quando precisassem de um pouco de renda suplementar ou para constituir alguma poupança e então se aposentando por longos períodos para uma vida confortável vivendo de seus próprios domicílios. Este padrão - vivendo dos recursos comuns e aceitando o trabalho assalariado apenas quando fosse conveniente - era precisamento o que os Cercamentos tinham a intenção de erradicar.


Pela mesma razão, o medo padrão de "desemprego" na indústria de produção em massa no estilo americano é, na verdade, bastante vinculado ao local e em grande parte irrelevante para a manufatura flexível dos distritos industriais no estilo europeu. Em tais distritos e, em uma medida considerável, na indústria americana de vestuário, o compartilhamento de trabalho com horas reduzidas é escolhido em detrimento a demissões, de modo que os deslocamentos a partir de uma recessão econômica são bem menos severos. Ao contrário da presunção americana de um "local de trabalho" como foco central do movimento trabalhista, o distrito industrial assume a solidária comunidade de ofício como a ligação de longo prazo primária para o trabalhador individual, e o local de trabalho em qualquer dado momento como um estado passageiro de coisas.


E, finalmente, em uma economia relocalizada de produção em pequena escala para mercados locais, em que a maior parte do dinheiro é circulado localmente, tende a haver uma tendência muito menor em relação a ciclos de expansão e recessão ou fluações radicais nos preços das mercadorias. Em vez disso, provavelmente haveria uma adequação razoavelmente estável da oferta à demanda no longo prazo.

Como querela menor, Price diz que eu falhei em notar as previsões de Engels sobre a tendência cada vez maior em direção a uma "estratificação completa do capitalismo" (citando Engels): "O representante oficial da sociedade capitalista - o estado - irá, em última análise, ter que se encarregar da direção da produção". Na verdade, ao discutir a nacionalização de de indústrias de extração centralmente importantes e da infraestrutura de comunicação e transporte sob o "socialismo democrático", eu fiz referência específica às passagens relevantes de Engels em Anti-Duhring.

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