sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Uma Má Interpretação do Anarquismo

Uma Má Interpretação do Anarquismo

[Liberty, 8 de Março, 1890]

Um dos jornais mais interessantes que chegam a este escritório é o Personal Rights Journal de Londres. Em grande parte escrito por homens como J. H. Levy e Wordsworth Donisthorpe, ele não poderia ser de outra forma. Virtualmente, ele defende a mesma fé política que encontra uma defensora na Liberty. Ele quer dizer com Individualismo o que a Liberty quer dizer com Anarquismo. Que ele não perceba esse fato, e que assuma que o Anarquismo seja algo além do que o individualismo completo, é a principal diferença entre nós. Este mal-entendimento do Anarquismo é muito clara e inteligentemente exibido em uma passagem que eu copio de uma palestra perspicaz e instigante sobre "The Outcome of Individualism"NT01, proferida por J. H. Levy ante o National Liberal Club em 10 de Janeiro de 1890, e impressa no Personal Rights Journal de Janeiro e Fevereiro:

Se estamos sofrendo com um veneno, achamos vantajoso tomar um segundo veneno, que aja como um antídoto para o primeiro. Mas, se formos sábios, limitamos nossa dose do segundo veneno de modo que os efeitos tóxicos de ambos combinados sejam mínimos. Se tomarmos mais dele, ele produz efeitos tóxicos próprios, além daqueles necessários para neutralizar, tanto quanto possível, o primeiro veneno. Se tomarmos menos dele, o primeiro veneno, em alguma medida, fará seu trabalho ruim sem controle. Isto ilustra a posição do Individualista, contra o Socialista de um lado e o Anarquista do outro. Eu reconheço que o governo é um mal. Ele sempre significa o emprego da força contra nossos companheiros e - na melhor das hipóteses - sua sujeição, em maior ou menor medida no campo da conduta, ao desejo de uma maioria de seus concidadãos. Mas se esta interferência organizada ou regularizada fosse completamente abolida, ele não escaparia da agressão. Ele estaria, numa sociedade tal como a nossa, passível de bem mais violência e fraude, o que seria um mal muito pior do que a interferência do governo precisa ser. Mas quando o governo pressiona a interferência além do ponto de manter a mais ampla liberdade igualmente para todos os cidadãos, ele é, ele próprio, o agressor, e não menos porque seus motivos são bons.

Nomes à parte, a coisa que o Individualismo favorece, de acordo com o precedente, é a organização para manter a mais ampla liberdade igualmente para todos os cidadãos. Bem, isso é precisamente o que o Anarquismo favorece. O Individualismo não quer tal organização por mais tempo do que o necessário. Tampouco o quer o Anarquismo. A suposição do Sr. Levy de que o Anarquismo não queira de maneira alguma tal organização surge de sua falha em reconhecer a definição Anarquista de governo. O governo foi definido repetidamente nestas colunas como a sujeição do indivíduo não-invasivo a um desejo que não o seu próprio. O sujeição do indivíduo invasivo não é governo, mas resistência e proteção contra o governo. Por estas definições, o governo é sempre um mal, mas a resistência a ele nunca é um mal ou um veneno. Chame tal resistência de um antídoto, se quiser, mas lembre-se que nem todos os antídotos são venenosos. O pior que pode ser dito da resistência ou da proteção é, não que ela seja um mal, mas que é uma perda de força produtiva em um esforço necessário para se superar o mal. Pode ser chamada de um mal apenas no sentido de que um trabalho necessário e não especialmente saudável pode ser chamado de uma maldição. A ilustração do veneno, boa o suficiente com as definições do Sr. Levy, não tem qualquer força com o uso Anarquista dos termos.
O governo é invasão, e o Estado, como definido na última edição da Liberty, é a encarnação da invasão em um indivíduo ou em um bando de indivíduos que assumem agir como representantes ou mestres de todo o povo dentro de uma dada área. Os Anarquistas se opõem a todo governo e especialmente ao Estado como o pior governador e principal invasor. Do ponto de vista da Liberty, não existem três posições, mas duas: uma, aquela dos Socialistas autoritários, que favorecem o governo e o Estado; a outra, aquela dos Individualistas e Anarquistas, contra o governo e o Estado.
É verdade que o Sr. Levy reconhece expressamente a liberdade de definição e, portanto, eu não devia ter dito uma palavra se ele tivesse simplesmente declarado a posição Individualista sem interpretar erroneamente a posição Anarquista. Mas tendo em conta esta interpretação errônea, devo pedir-lhe para corrigi-la, a menos que possa demonstrar que a minha crítica é inválida.
Eu posso adicionar, em conclusão, que muito provavelmente a disposição do Individualista de dar maior proeminência do que o faz o Anarquista à necessidade de organização para proteção é devida ao fato de que ele parece ver menos claramente do que o Anarquista que a necessidade de defesa contra invasores individuais é grandemente e talvez, afinal, inteiramente devida às opressões do Estado invasivo e que, quando o Estado cair, os criminosos começarão a desaparecer.

[NT01] "O Resultado do Individualismo", em português

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O anarquismo enquanto um programa progressivo de pesquisa em economia política

O anarquismo enquanto um programa progressivo de pesquisa em economia política
A teoria econômica, desde seu primeiro tratamento sistêmico em Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações de Adam Smith, tem claramente enfatizado os benefícios mútuos do comércio voluntário. Ao se especializar na produção e oferecer os bens e serviços para troca com outros, tanto os indivíduos quanto a sociedade ficarão em melhor situação. A fonte da riqueza não são os recursos naturais que jazem na terra ou as conquistas de terras estrangeiras, mas uma expansiva divisão do trabalho guiada pela troca voluntária. Smith havia estabelecido uma presunção em relação ao voluntarismo na interação humana em bases consequencialistas. A liberdade individual não era apenas correta de uma perspectiva moral, mas produziria maiores benefícios sociais também. No entanto, desde o princípio da economia se argumentou que estes benefícios da troca voluntária só poderiam ser realizados se a presunção em relação ao voluntarismo fosse suspensa a fim de criar as instituições governamentais necessárias para fornecer o framework dentro do qual a troca voluntária pode ser realizada.
Precisamente quanto a presunção em relação ao voluntarismo precisaria ser suspensa a fim de fornecer o framework para a troca voluntária tem sido uma das questões mais contestadas na economia desde o final do século XIX. A teoria dos bens públicos, do monopólio e das falhas de mercado todas contribuíram para expandir a aceitação da coerção e para qualificar a presunção em relação ao voluntarismo entre os economistas do mainstream. É importante lembrar que cada um desses argumentos para qualificar a presunção suscitou contra-argumentos por parte de economistas que demonstraram que os chamados bens públicos podem, na verdade, ser fornecidos de forma privada, que o monopólio não é uma consequência natural da troca voluntária, mas o resultado da intervenção governamental e que as falha de mercado são, elas mesmas, na raiz, causadas pelas falhas legais e não a consequência da troca irrestrita. Embora a linha dominante de pesquisa tenha pressionado contra a presunção de voluntarismo, uma outra linha de pesquisa sugere que a presunção deveria ser defendida mais consistentemente se se quiser atingir uma ordem social pacífica e próspera.
É esta linha alternativa de pesquisa que eu quero enfatizar em meus comentários aqui. Como explicarei, minha ênfase será no que eu chamarei de 'anarquismo analítico positivo' e no potencial evolutivo destas ideias enquanto um programa progressivo de pesquisa em economia política no cenário contemporâneo da ciência social.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O Individualismo se Choca com a Cooperação?

O Individualismo se Choca com a Cooperação?
O Coletivismo Força a Cooperação, Entregando Dissonância e Violência

Individualistas têm uma má reputação na política nos dias de hoje. Isso não deveria ser nenhuma surpresa; a política nos dias de hoje é dominada pela política eleitoral, e a política eleitoral é uma empreitada essencialmente anti-individualista. Com mercados livres e outras formas de associação voluntária, as pessoas que não conseguem concordar sobre o que vale a pena podem seguir seus próprios caminhos. Mas o ponto das eleições governamentais é dar às pessoas da maioria política um meio para forçar suas leis, projetos e governantes favoritos sobre as objeções das pessoas da minoria política e fazer todo mundo obedecer essas leis, financiar ou participar desses projetos e reconhecer esses governantes.

Ainda assim, mesmo se for pouco realista esperar que o individualismo receba muito respeito de pessoas que estão profundamente investidas na política eleitoral, não é pedir demais para que elas não tentem ganhar pontos políticos distorcendo totalmente nossa posição. Em todo caso, se elas o fizerem, vale a pena tomar o tempo de esclarecer as coisas.

Por exemplo, considere "The Social Animal" do colunista neoconservador do New York Times David Brooks (de 12 de Setembro de 2009). Ele começa citando o argumento de Barry Goldwater (em The Conscience of a Conservative) de que "Todo homem, para seu bem individual e para o bem de sua sociedade, é responsável por seu próprio desenvolvimento. As escolhas que governam sua vida são escolhas que ele deve fazer; elas não podem ser feitas por qualquer outro ser humano... A primeira preocupação do conservadorismo sempre será: Estamos maximizando a liberdade?".

Noções Antiquadas?

Brooks diz que as ideias de Goldwater parecem vir de uma visão da vida humana baseada em indivíduos solitários e ásperos - "o pioneiro corpulento cruzando o Oeste, o empresário tomador de riscos com uma visão, o herói valente lutando contra o inimigo coletivista". Brooks protesta que "uma maré de pesquisas" nas ciências humanas e sociais demonstrou que as noções individualistas antiquadas de Goldwater não são suportadas pelas últimas evidências empíricas porque, Brooks nos conta, seres humanos são criaturas sociais por natureza, intimamente ligados uns aos outros no tecido de uma vida social compartilhada.

Em seguida, ele coloca em uma série de políticas republicanas que ele considera muito travadas no quadro de livre mercado do velho Goldwater - cortes de impostos, vouchers de educação financiados por impostos, e a "escolha individual financiada pelo governo federal" dos cuidados de saúde. Ele sugere que princípios individualistas de livre mercado impediram os conservadores modernos de proporem uma justificativa convincente para os gigantescos resgates financiados por impostos do governo federal para as principais empresas de investimento e capital de hipoteca. (Aparentemente a falha em fornecer uma justificativa convincente para os regates governamentais das grandes empresas deve ser um problema do individualismo, não um problema com os resgates.) E ele conclui que o legado de Goldwater de individualismo de livre mercado irrealista agora é "o principal impedimento para a modernização Republicana", que ele acredita que tem prejudicado os esforços de seus colegas republicanos para fornecer respostas plausíveis para "as mais graves preocupações atuais", que remontam ao fato de que "as pessoas não têm um ambiente seguro em que possam levar suas vidas".

Talvez Brooks esteja certo sobre o legado de Goldwater estar atrasando os Republicanos politicamente. Ideias individualistas podem ser uma venda difícil, particularmente uma vez que o foco obsessivo na política eleitoral como uma panaceia para todo mal social garante que ideias genuinamente individualistas quase nunca são apresentadas na mídia ou discutidas em fóruns públicos. Mas quer ele esteja certo ou errado sobre a melhor maneira para os Republicanos se "modernizarem completamente", eu não ligo muito para o Partido Republicano ou seus prospectos políticos, ou para a reputação de Barry Goldwater. Eu me importo, sim, com os prospectos para o individualismo e para mercados verdadeiramente libertos. E o argumento de Brooks contra eles comete uma série de erros sérios e enganosos.

Brooks, em última análise, condena políticas de livre mercado porque elas têm cheiro de individualismo e ele condena o individualismo porque seres humanos são demonstravelmente animais sociais, que vivem vidas interdependentes e ganham tanto utilidade quanto significado através de redes sociais, comunidades e projetos compartilhados. Ele aponta que pensadores conservadores tradicionalistas como Edmund Burke apreciavam "o valor das redes, das instituições e dos laços sociais invisíveis" - aparentemente acreditando que isso os separa de livre-mercadistas individualistas. Claro que seres humanos são criaturas sociais e que redes, instituições e laços sociais invisíveis são todos tremendamente importantes para nossas vidas e subsistências compartilhadas. Mas tentar usar isso como um argumento contra o individualismo não é nada além de um non sequitur pesado. Que individualista jamais negou isso? Individualistas, ao contrário das alegações de Brooks, não têm qualquer objeção geral à socialidade humana. Percebemos o quanto todos nós dependemos uns dos outros em nossas vidas cotidianas. Isso deveria ser óbvio o suficiente a partir do fato de que acreditamos em substituir a regulamentação governamental pelos mercados libertos e por associações voluntárias. Mas se não é óbvio o suficiente, deixemos tão claro quanto pudermos.

Um mercado liberto não é nada mais, nada menos, que uma forma de colaboração social espontânea. Não existe nenhum mercado sem diversas pessoas cooperando umas com as outras para comprar e vender, interdependentes de outras que trabalham, inventam, descobrem oportunidades e geralmente se viram para negociar e escambar. E há miríades de outras maneiras para pessoas livres escolherem cooperar individualmente sem trocas monetárias, como redes familiares, caridades, organizações comunitárias, lojas fraternais ou sociedades de ajuda mútua voluntárias e sindicatos de trabalhadores.

Cooperação ou Coerção

O debate entre individualistas e coletivistas "modernizados" não tem nada realmente a ver com se os seres humanos deveriam ou não viver uma vida social; tem a ver com os termos nos quais nos associamos para trabalharmos e vivermos juntos - se nossas combinações sociais deveriam ser cooperativas ou coercitivas. Combinações sociais só podem ser verdadeiramente cooperativas se elas forem voluntárias - se elas forem organizadas através da persuasão e do acordo de livre entre todos os envolvidos, em vez de através da força e da obediência coagida por alguns em favor de uns poucos.

Aparentemente Brooks acredita que temos apenas duas opções: Ou vivermos como uma massa de eremitas solitários que não cooperam, mas são livres e "individualistas ásperos" do cada um por si, ou então vivemos como uma rede de "criaturas socialmente incorporadas" cooperativas, mas sem liberdade, com impostos e regulamentações governamentais empurrando-nos para baixo para se certificar de que sejamos bons e estejamos incorporados no conjunto particular de arranjos sociais que o governo favorece - quer qualquer um de nós tenha escolhido fazer outros arranjos com nossos companheiros ou não. Mas onde isso deixa a óbvia terceira opção - a cooperação voluntária?

O individualismo não é uma justificativa filosófica para atitudes antissociais ou para a indiferença ou hostilidade em relação às suas criaturas semelhantes. É o coletivista, não o individualista, que vê seres humanos como criaturas naturalmente truculentas que não se importam o suficiente umas com as outras para conviverem pacificamente e que precisam ter os planos para a colaboração forçados sobre si a partir do topo. Prometendo harmonia e segurança sociais, o coletivismo entrega dissonância e violência.

Os individualistas acreditam no individualismo precisamente porque acreditamos que seres humanos podem e devem ser tanto sociais quanto civilizados uns com os outros ao mesmo tempo - que a vida comunal e social não exige empurrar as pessoas ao redor ou assediá-las para que sigam um grande plano. O que Brooks falha em ver é como - individualmente - podemos pacifica, livre e naturalmente formar comunidades, instituições e laços sociais invisíveis conforme percorremos nosso caminho através do mundo.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

De Famílias Livres a Sociedades Estatistas e De Volta Outra Vez

De Famílias Livres a Sociedades Estatistas e De Volta Outra Vez

Introdução

Como seriam as famílias em uma nação livre? Esta questão levaria pelo menos diversos volumes para se explorar por completo. E não há realmente nenhum conjunto definitivo de respostas. A maior diferença não seria que algo novo estaria presente, mas antes que algo estaria ausente - a influência do estado. A interferência do estado na sociedade encoraja alguns tipos de comportamentos familiares e desencoraja outros. Na ausência do estado é provável que algumas tradições familiares inteiramente novas emergissem, mas também que as anteriormente estabelecidas continuassem a existir, incluindo algumas que são raras atualmente. No geral, as escolhas feitas por indivíduos nesta matéria provavelmente seriam mais diversas e abertas do que é o caso em sociedades estatistas.

Em vez de tentar fornecer uma lista completa das alternativas, eu discutirei como a história das famílias humanas indica uma ampla variedade de possibilidades para a estrutura familiar e então examinar a relação histórica do estado com as famílias. Ao fazê-lo, eu estarei trabalhando sob a tese de que, em sociedades estatistas, a família está em concorrência direta com o estado pela lealdade e pelo controle dos recursos dos indivíduos. Finalmente, explorarei temas para apenas algumas das muitas oportunidades modernas que uma nação livre poderia oferecer às famílias.

A discussão contemporânea sobre a política da família frequentemente envolve a noção de "valores familiares", ou o que é bom para "a família". Em tais discussões, frequentemente se mantém que "a família" é a unidade social básica da sociedade civilizada. É, contudo, um tipo muito específico de família a que se faz referência, uma família com um macho adulto e uma fêmea adulta, que têm um casamento licenciado pelo estado e que estão criando dois ou três filhos. O homem e a mulher tipicamente têm ou tiveram um relacionamento sexual e são tipicamente os pais biológicos das crianças. Os membros da família vivem em uma única residência. Eles podem ou não ter parentes de sangue por perto. Mas a maior parte de suas interações sociais são com pessoas com quem eles não são relacionados.

Frequentemente se assume em discussões de problemas sociais que uma sociedade que fomenta esse tipo de família é desejável e que esse tipo de família é o mais natural para a humanidade. Mas estas noções estão claramente erradas. Na história natural da humanidade, a família mencionada acima é um fenômeno muito recente. Pensa-se que variações do tipo biológico humano (caracterizado, entre muitas outras coisas, pelo uso da pedra ou de ferramentas mais avançadas) existem há pelo menos 2 milhões de anos. Estes, nossos ancestrais, viveram, na maior parte do tempo, em bandos caçadores-coletores, em uma estrutura social com características muito diferentes do ideal da "família moderna".

A Estrutura Familiar Mais Antiga da Humanidade

O bando caçador-coletor era certamente uma comunidade, embora normalmente uma pequena. Seria tipicamente composto de menos do que 100 indivíduos de ambos os sexos e uma ampla gama de idades. Percorreria a paisagem em busca de animais pequenos e médios, tipicamente caçadas pelos machos adultos, e animais muito pequenos, insetos e plantas comestíveis, tipicamente coletados pelas fêmeas e crianças. Esta era a divisão mais significativa do trabalho, produzindo, de algumas formas, ambientes e subculturas separadas para homens e mulheres. Os homens poderiam caçar individualmente ou em grupos. Mas quando cooperavam, a liderança não era embasada em postos oficiais, mas sim em um caçador propondo uma caçada em grupo e recrutando outros para segui-lo. Ninguém era compelido a seguir, no entanto, e caçadas diferentes poderiam ter tido líderes diferentes baseado no carisma relativo de diferentes indivíduos em diferentes momentos. As mulheres precisavam de ainda menos coordenação. Com elas a liderança seria mais uma questão da mais sábia ou mais habilidosa em dar conselhos conforma a necessidade surgia.

As evidências sugerem que haviam poucas, se quaisquer, pessoas que hoje chamaríamos de "velhas" (acima de 50 anos). O cuidado das crianças era primariamente o trabalho da mãe biológica de cada criança, mas todas as crianças eram nutridas em alguma medida por todos os adultos, especialmente as mulheres. Na maior parte da existência da humanidade, a noção de paternidade não existiu, já que a relação entre sexo e gravidez não era conhecida. É impossível dizer quando esta descoberta foi feita, mas mesmo após a noção de paternidade ter sido estabelecida, havia uma tendência do parentesco de uma criança ser traçado primariamente ou apenas através de sua mãe, já que a identidade do pai biológico ainda era duvidosa. No entanto, a qualquer momento, a mãe de uma criança poderia ter tido um amigo homem adulto especial dentro do bando que fazia sexo regularmente com ela e que compartilhava comida com ela e com quaisquer crianças pequenas que ela pudesse ter. Esta associação do homem com a mãe beneficiaria sua jovem criança, embora ele pudesse não ter sido seu pai biológico. Estes grupos menores de indivíduos estariam grosseiramente próximos da noção moderna de "agregado familiar". Cada criança quase certamente saberia quem era sua mãe, e assim também quem eram as outras crianças de sua mãe, e assim também quem (pelo lado de sua mãe) eram suas tias, tios, etc. Se estas pessoas estivessem por perto, uma certa afinidade entre tais parentes de sangue existiria. A maior parte dos adultos teria sido criada junta e, em grande medida, estaria criando suas próprias crianças junta.

Contudo, a família de sangue (pelo lado da mãe), embora conhecida, poderia não ficar com o bando. Durante a maior parte do período em que humanos se organizaram apenas como bandos caçadores-coletores, a humanidade ainda não havia preenchido o espaço habitável disponível. O número total de humanos na terra crescia de forma extremamente lenta. Grandes riscos de doenças ou ataques de animais impediam a maior parte das crianças de atingir a idade adulta. Muitas mulheres morriam no parto. Os homens podiam ser feridos em confrontos com animais. Conseguir comida o suficiente não era o maior problema. Mas haveriam épocas em que a comida em alguma área específica poderia ter sido um pouco escassa, motivando o bando a se dividir em dois ou mais grupos e irem por caminhos separados. Ninguém provavelmente morreria de fome, mas indivíduos poderiam perder contato com parentes. A perda de um membro do grupo poderia também ocorrer quando bandos diferentes se encontrassem. Normalmente, eles poderiam se permitir um grau razoável de cordialidade. E, quando tomavam caminhos separados, cada bando poderia perder alguns membros para o outro. Às vezes, mas não sempre, isso envolveria novos relacionamentos sexuais, diversificando assim o pool genético de cada grupo, como é o caso com os grandes primatas até hoje.

Pensa-se que humanos "anatomicamente modernos" emergiram entre 150.000 e 200.000 anos atrás. Ainda assim, a maioria, se não todos os humanos continuaram a viver como caçadores-coletores até pelo menos 10.000 anos atrás. Refere-se ao período mais antigo e longo como o "Paleolítico" (ou Antiga Idade da Pedra). O período mais novo é chamado de "Neolítico" (ou Nova Idade da pedra, cobrindo o período até o primeiro uso de metal). Apenas no Neolítico é que algumas comunidades começaram a desenvolver outros meios de se prover de comida. Lentamente o número de não-caçadores-coletores aumentou até que a vasta maioria das culturas não fossem desse tipo (embora algumas comunidades caçadoras-coletoras ainda existam hoje). Então, no mínimo 90% da história humana é caracterizada por uma organização social que era muito funcional, mas que não incluía quaisquer instituições que fossem muito parecidas com o ideal da "família moderna". O grupo caçador-coletor era uma "família", mas, pelos padrões modernos, uma razoavelmente grande, com lealdades que eram tanto social quanto biologicamente embasadas e que careciam completamente de muitos dos "valores familiares" de hoje. Se há qualquer coisa como uma família "natural", esta era ela. Mas deveríamos esperar uma re-emergência deste tipo de família em uma sociedade livre? Provavelmente não.

Novas Fontes de Comidas Influenciam a Estrutura Familiar

Quando as pessoas primeiro começaram a se associar em padrões diferentes do bando caçador-coletor, elas ainda não se organizaram em famílias modernas. Durante a última parte da era Paleolítica, os humanos haviam se tornado caçadores-coletores especialmente bons. Eles se tornaram os predadores dominantes na maior parte dos lugares, com muito menos probabilidades de serem atacados por grandes felinos. Eles até formaram uma parceria com alguns dos caninos. A população humana havia começado a aumentar em uma medida que, em alguns lugares, era difícil alimentar todo mundo das formas tradicionais.

Três novos tipos de economia emergiram - pastoreio, pesca e cultivo de plantas. Estas tendiam a produzir novos padrões familiares, cada um distinto dos outros, mas nenhum deles iguais à família moderna. Na verdade, mesmo dentro de cada uma das novas tradições econômicas, uma grande variedade de estruturas familiares existia. Em muitas instâncias, as comunidades humanas formadas eram muito maiores do que os bandos caçadores-coletores, mas isto não era sempre verdade. Havia também uma grande tendência dos membros da família manterem contato, especialmente quando as comunidades se estabeleceram em áreas geográficas definidas, mas isto não também não era sempre verdadeiro.

Quando grupos maiores e mais densos começaram a entrar em contato muito regular com outros, eles se tornaram menos fluidos. Conforme os bandos acharam conveniente reivindicar terrenos agrícolas específicos, rebanhos específicos de animais ou locais especificamente bons para a coleta de frutos do mar, a noção de território de grupo se tornou mais importante. A participação no grupo tornou-se mais valiosa para os indivíduos. Os pequenos agrupamentos compostos de uma mulher, suas crianças pequenas e seu companheiro se tornaram agregados familiares de verdade. As crianças tendiam a manter contato próximo umas com as outras quando adultas, para ajudar a manter e explorar reivindicações comuns de recursos alimentares. Bandos caçadores-coletores se solidificaram em "clãs" com tradições mais claras de participação, embasadas mais estritamente em laços de familiaridade por sangue. A noção de um casamento, ou compromisso vitalício sexual e de criação de filhos entre adultos de sexos opostos, embora não fosse completamente desconhecida para caçadores-coletores ao final do período Paleolítico, se tornou muito importante para os povos Neolíticos. O casamento confirmava a associação de um adulto nascido em um clã, mas que vivia em outro, e confirmava a participação no clã das crianças nascidas da união.

Nas comunidades maiores e especialmente nas sedentárias, havia uma tendência para alguma divisão do trabalho para além de caça vs. coleta. Os povos estabelecidos em uma localização poderiam possuir mais bens materiais, o que criava uma demanda por especialistas habilidosos que forneceriam vários bens em troca de comida ou de outros bens. Estes especialistas poderiam passar suas habilidades para seus filhos e assim estabelecer ocupações de família. Um valor adicional para a participação na família foi criado quando relações tradicionais de troca se formaram entre clãs ou entre famílias dentro de clãs.

Ainda assim, os costumes do Neolítico, incluindo as tradições de estrutura familiar, variaram amplamente em termos de especificidades. A generalização mais significativa que pode ser feita sobre qualquer uma delas é que eram significativamente diferentes das famílias de caçadores-coletores. Então, entre as poucas coisas que podemos dizer sobre o que é "natural" quanto a abordagem humana à estrutura familiar (em contraste com, digamos, aqueles de espécies específicas de pássaros ou de outros mamíferos), é que as comunidades humanas podem prosperar usando uma ampla variedade de estruturas familiares. Uma outra coisa que pode ser dita é que a economia pode influenciar muito na determinação de quais formas de família uma dada cultura humana adotará.

A Emergência do Estado

O conceito da família moderna não é apenas um produto das instituições econômicas modernas. É também um produto de milhares de anos interação com outras instituições sociais, notavelmente aquela conhecida como estado. Um estado é, em seu âmago, uma instituição militar que reivindica recursos dos indivíduos em uma sociedade em troca do fornecimento de defesa contra o comportamento predatório de instituições militares concorrentes. Cidadãos individuais de uma sociedade estatista permanecerão nesta relação ou porque 1) eles têm medo de desafiar o poder militar de "seu" estado, 2) eles temem mais um poder militar rival ou 3) alguma combinação de ambos. O estado não é, contudo, "natural" às comunidades humanas.

Não está claro exatamente quando o estado emergiu na história natural da humanidade, nem exatamente quando as primeiras instituições militares que foram claramente ancestrais do estado moderno deveriam ser chamadas de "estados". O bando caçador-coletor não era um estado. Haviam poucas pessoas em cada bando e nenhum subgrupo militar especial existia. Quando um bando era atacado por animais ou outros humanos, qualquer membro do grupo capaz de fornecer qualquer tipo de defesa para o grupo o fazia. Frequentemente, no entanto, a linha primária de defesa seria composta dos machos adolescentes e adultos do bando. Tal coordenação de força armada era uma extensão dos padrões de caça usados pelos machos, mas seria suplementada pelas mulheres e crianças quando elas pudessem fornecer ajuda. Este padrão também pode ser encontrado em outros primatas sociais. Mas, ao passo que os caçadores podem ser vistos como uma subseção do bando como um todo, eles não eram uma comunidade separada no sentido em que os soldados modernos e a polícia são um grupo separado dentro da sociedade mais ampla. Não havia qualquer choque de lealdade para os indivíduos entre "família" e "unidade militar". O combatente individual não tinha que deixar a família para participar da defesa da comunidade como os soldados modernos frequentemente fazem durante o dever militar ativo.

As comunidades Neolíticas, com populações mais densas e competição séria e frequente por comida, modificaram as estruturas familiares Paleolíticas para acomodar seus ambientes. Nenhuma instituição militar de estilo moderno se desenvolveu no período Neolítico, mas muitas culturas Neolíticas desenvolveram novas maneiras de coordenar a violência organizada. Grandes formações militares se formaram conforme guerreiros de diversos agregados familiares se combinaram sob um líder. Este chefe de guerra podia manter a posição formalmente e por longos períodos de tempo. Unidade militares do tamanho de clãs, baseadas em um reconhecimento de laços de sangue (às vezes via adoção, às vezes via casamento), se tornaram comuns entre povos Neolíticos. Chefes de guerra especialmente carismáticos poderiam ter sido capazes de reunir diversos clãs em uma aliança militar para derrotar um clã rival em comum. Estas alianças teriam sido mais fáceis onde os clãs aliados se pensassem parentes de sangue.

Vantagens militares e outras eventualmente encorajaram a associação de clãs para formarem "tribos", grupos maiores que falavam uma língua em comum e pensavam ser descendentes de um ancestral comum. Tribos não são completamente "naturais" a humanos, mas tampouco estão elas completamente fora do contexto Paleolítico "natural". Membros de bandos caçadores-coletores teriam sabido da existência de outros bandos que tinham relações de sangue com eles, que falavam uma língua em comum e que compartilhavam muitos costumes. E tais bandos relacionados teriam sido distinguíveis de ainda outros bandos com língua e costumes diferentes, na medida em que tais fossem conhecidos. Culturas Paleolíticas, contudo, provavelmente tendiam a pensar sobre "bandos relacionados" e "bandos estranhos" em vez de em termos de tribos. E elas não teriam tido qualquer necessidade de pensar em unidade militares formadas a partir de alianças de bandos, pelo menos não enquanto todos os humanos eram caçadores-coletores.

No Neolítico, bolsões de filosofia política de soma zero e soma negativa emergiam com regularidade, especialmente nas áreas mais densamente populadas. As novas fontes de comida podiam suportar muito mais pessoas em algumas terras do que o podiam a caça e a coleta. Mas nem sempre. O tempo ruim poderia prejudicar a agricultura, em especial. Às vezes as pessoas vivendo em assentamentos densos descobriam que a única alternativa à fome para seu grupo era forçar a fome sobre seus vizinhos. Este era um clima ideal para a formação de atitudes e instituições estatistas.

A emergência da cidade fortificada como a base de uma política "civilizada" (não mais Neolítica) pode ter sinalizado a primeira instância de uma instituição estatista. Mas certamente haviam enclaves estatistas em cidades estabelecidas. Os estatistas dominaram cada vez mais as cidades e áreas urbanas (de cidades muradas). As maiores formações militares eram ou recrutamentos da população masculina das cidades muradas ou facções assaltantes do tamanho de clãs de populações de pastores que atacavam as cidades. No caso dos pastores, os clãs às vezes se organizavam em facções assaltantes do tamanho de tribos, mas isso foi raro até que clãs militares e patrilineares (descendentes dos filhos determinados pela paternidade estabelecida) emergiram para liderá-las. Um homem com filhos e netos para segui-lo em batalha poderia coordená-los melhor se se pensasse que ele devia sua lealdade a ele. Como um líder militar hereditário de tal clã, um chefe de guerra carismático poderia recrutar a maior parte dos guerreiros de uma tribo em um único exército.

O Surgimento de Família "Nobres"

A estrutura social das cidades foi influenciada pela superpopulação entre os grupos de pastores vizinhos. Em tempos de dificuldade entre os pastores, onda após onda destas tribos recaíram sobre as cidades muradas. Poucos generais criados nas cidades podiam derrotar as formações militares de pastores em campo aberto quando os pastores eram guiados por um general habilidoso dos seus, embora as cidades estivessem usualmente bem protegidas por suas muralhas. Mas ao longo do tempo os comandantes pastores vieram a substituir os líderes militares nativos das cidades muradas. Às vezes como mercenários, às vezes por meio de relações hereditárias, os descendentes dos clãs de pastores forjaram reivindicações de propriedade com base no clã à maioria das instituições militares civilizadas. Em épocas mais recentes, esta reivindicação veio a ser denominada de "nobreza". Clãs nobres - famílias frequentemente do tamanho dos maiores ajuntamentos Paleolíticos (mas não maiores) - se aliaram uns aos outros para se tornarem uma instituição militar com base em tribos, que ficou arraigada como força politicamente dominante em muitas cidades. Seus generais administravam, além de seus parentes, um exército composto de recrutas da maioria das famílias não-nobres da cidade. Eles começaram a aprender como usar instituições não-militares para controlar este tipo de exército. Aprenderam a assegurar que todas as forças militares de sua cidade (mais tarde de seu império) permanecessem sob controle nobre. Entre estas instituições não-militares estavam aquelas da religião e da lei.

As primeiras áreas urbanas frequentemente evoluíram onde as famílias de clãs separados se encontraram, tentaram se reunir como uma única tribo em separado e, em vez disso, desenvolveram aversões étnicas uma à outra. Ainda assim, elas podem ter tido que se contentar (se não houvesse qualquer lugar melhor para se estabelecer). Então elas desenvolveriam instituições legais baseadas no costume - mas um costume nascido das relações entre os clãs separados. Este sistema funcionou tão bem que veio a ser usado para formar, em cada cidade, unidades políticas a partir do número equivalente a muitas tribos de clãs não-nobres "domesticados" (clãs que haviam desistido da esperança de revolta militar contra os nobres). Contudo, ele dependia da ausência de tribos fortes além dos próprios nobres. Então outras afiliações tribais dentro da cidade foram reduzidas a um mínimo. Os nobres encorajavam tanto quanto podiam costumes e leis para a cidade que fossem enviesados contra quaisquer grupos rivais do tamanho de tribos. E a adjudicação destas leis seria mantida fora das mãos de membros de clãs não-nobres e colocada nas mãos dos nobres.

Durante a maior parte do período desde o surgimento das cidades muradas (às vezes chamado de período "Civilizado"), os clãs continuaram a prosperar, apesar do enfraquecimento da maioria das associações tribais nas terras controladas pelas cidades (que sempre incluíram muitos terrenos agrícolas, não apenas as próprias cidades). Filiações tribais começaram a ser associadas, nas mentes de muitas pessoas, com filiações religiosas. Os nobres vieram a ver que não poderiam controlar os não-nobres exceto se os permitissem uma certa forma aleijada de identidade tribal - tribos domesticadas. Pretensos generais rebeldes em clãs suprimidos aprenderam que poderiam operar de maneira política como membros de uma ordem religiosa. A paz foi firmada com muitos sacerdócios de muitas etnias pelos nobres em cada cidade. Contanto que os sacerdotes pregassem contra a rebelião política, eles poderiam atingir uma considerável proeminência social.

Os Políticos: Líderes Sem Conexões com Famílias Nobres

Mas a atividade a nível de clã continuou a prosperar. Em parte, isto pode ter sido porque os nobres viam a família ao nível de clã como mais natural, ao ver que eles próprios ficavam juntos enquanto uma tribo primariamente a fim de dominar a cidade. Os nobres poderiam também fortalecer suas próprias fileiras recrutando, como novas famílias nobres, clãs sem posições nobres, de tempos em tempos. Eventualmente isto aconteceu em tal medida que a liderança em muitas cidades passou para uma nova classe - os políticos. Um político podia ou não ser um nobre, apesar do fato de que a riqueza e a influência hereditárias ainda eram um fator preponderante na política da comunidade, mas, em todo caso, sua influência enquanto político - isto é, a influência da classe de políticos - começou a exceder aquela dos nobres não-políticos. Assim o indivíduo político não-nobre podia governar sobre indivíduos nobres não-políticos - eventualmente sobre indivíduos nobres políticos também - talvez sobre todos os nobres.

De algumas maneiras, a mobilidade social enquanto políticos deu aos plebeus oportunidades tremendas para a aquisição de poder. Mas tal poder tinha que ser ganho e mantido dentro da ordem tradicional da sociedade. O poder e a riqueza hereditários continuarem a exercer uma influência considerável. Vários ataques institucionais foram feitos contra clãs rivais por parte de tribos políticas/nobres em associação com tribos sacerdotais. Vários programas de opressão religiosa foram tentados às vezes também. Ainda assim a rebelião foi fomentada, de tempos em tempos, contra a ordem política por parte de clãs não-nobres que formariam sindicatos criminosos (e assim tribos rivais).

Ao longo do tempo os políticos aprenderam a lidar com isto de várias maneiras. Conforme poderosos rivais em potencial foram reconhecidos, eles foram sendo encorajados a formar associações tribais domesticadas adicionais além da religião - mas não além da lei. Guildas de mercadores, artesãos ou associações profissionais foram reconhecidas, licenciadas e às vezes subsidiadas pelo estado. Uma tribo domesticada especial de burocratas se formou em muitos estados para administrar os detalhes do estado abaixo das mais altas políticas controladas pelos políticos. A noção de uma corporação foi concebida - uma organização econômica que rivalizava o clã ou a tribo em tamanho, licenciada e respondendo ao estado em vez de a laços de parentesco e capaz de operar em qualquer campo de atividade. Indivíduos que se juntavam a estas tribos domesticadas eram encorajados a se envolverem profundamente nelas e a desenvolverem lealdades fortes a elas, que rivalizariam (e sempre que possível colocariam de lado) as lealdades de parentes de sangue. Os políticos começaram a fomentar a noção de que não apenas a tribo, mas agora também o clã, eram indesejáveis. Os políticos não podiam exatamente proibir os clãs. Não era prático. Mas eles poderiam fazer coisas para desencorajar comportamentos que facilitassem a formação de clãs.

O Ataque Final à Família

Conforme cada vez mais políticos "por esforço próprio" ganharam proeminência sem a ajuda de conexões familiares, surgiu entre eles um desejo de eliminar a concorrência de todo poder embasado na família. Os políticos começarem a extrair apoio dos burocratas do estado e de membros dos clãs "domesticados", especialmente os grupos ocupacionais e corporações (incluindo entidades corporativas "sem fins lucrativos" como universidades). Eventualmente, as famílias nobres foram expulsas do poder em revoluções ou através de uma lenta erosão de seus privilégios. Famílias cujo poder derivava da riqueza herdada foram sujeitas à tributação crescente. Leis foram instituídas para desencorajar o nepotismo na burocracia do estado.

A noção do "ideal de família" mencionada acima tem sido usada primariamente como uma maneira de impedir que clãs fortes se formem. Clãs (às vezes chamados de "famílias estendidas") são retratados como "antiquados" quando comparados com padrões da "família moderna" (às vezes chamada de "família nuclear"). Nos tempos modernos, foram encorajadas várias forças sociais que enfraqueceriam todas as conexões familiares, mesmo entre pais e crianças pequenas. A mais significativa destas foi implementada através do sistema de escolas públicas. Todos os cidadãos foram tributados para sustentar as escolas estatais, que recrutavam qualquer criança cujos pais não escolhessem, ou simplesmente não pudessem, pagar tanto essas taxas quanto taxas separadas para a educação privada. Dentro das escolas estatais as crianças foram encorajadas a se prepararem para trabalhar em um cenário burocrático, em que sua própria família tinha pouca ou nenhuma influência. Vantagens fiscais e regulatórias dadas à corporações e dinheiro de impostos dado a empresas estatais aumentaram os números de tais empregos grandemente e aumentaram o pagamento daqueles que trabalhavam neles. Enquanto isso, o aumento da carga tributária necessária para financiar essas políticas encorajou ambos os pais na maioria das "famílias nucleares" a trabalhar fora de casa, dando aos pais menos tempo e energia para supervisionar seus filhos. As crianças mais novas são enviadas para creches. Crianças mais velhas são recrutadas para times esportivos ou para as audiências de times esportivos, onde sua tendência a formar fortes lealdades de grupo é canalizada em direção a organizações atribuídas pelo estado. Quando adultas, este treinamento encoraja os indivíduos a verem os esportes como a única maneira apropriada de desafogar um desejo por competitividade em grupo, até que o estado esteja pronto para canalizar esta energia em uma guerra.

Nas sociedades industriais modernas, a lista de tribos domesticadas patrocinadas pelo estado se tornou gigantesca. Os políticos começaram a ver menos necessidades para o tribalismo embasado na religião e começaram a espremer os líderes religiosos para fora da aliança no topo da hierarquia política. Em um contra-ataque contra os políticos, muitos líderes religiosos começaram a se retratar como defensores conservadores da "família". Mas isto pode ser tão enganoso quanto o esforço do político de desviar os indivíduos para relações pseudo-familiares sustentadas pelo estado. A ênfase no casal casado com filhos que os dão líderes religiosos tende a escamotear filiações de sangue do tamanho de clãs. Em vez disso, os líderes religiosos querem uma estrutura em que cada família nuclear está associada com uma "congregação" religiosa do tamanho de um clã que, por sua vez, está associada com uma "denominação" maior do tamanho tribal. Nenhum líder religioso diz que clãs são ruins, mas são rápidos em afirmar que a lealdade às tradições da denominação religiosa deveria ter precedência sobre a lealdade aos parentes de sangue se um conflito entre estas duas ocorrer. "Famílias nucleares" não são realmente a fundação da sociedade neste modelo; elas são apenas outro exemplo de uma unidade familiar domesticada. Basicamente, estes "conservadores religiosos" estão menos preocupados em construir famílias fortes do que estão em construir uma ordem política para rivalizar com aquela dos políticos, baseada em estruturas sociais religiosas em vez de estruturas sociais estatais. E eles não são realmente opostos aos ditames estatistas para indivíduos ou para famílias. Estes líderes religiosos simplesmente desejam reorganizar o estado de modo que ele seja dominado por suas próprias instituições e de modo que o estado seja controlado por políticos com afiliações religiosas em vez dos políticos de propósito mais geral que atualmente dominam a maioria das sociedades industriais.

Assim se conclui minha discussão da história da família e das influências sobre a estrutura familiar que uma nação livre não conteria - as influências de um estado. Como a remoção da influência estatal faria diferença?

Famílias em uma Nação Livre

A emergência de uma nação livre não será simplesmente uma questão daqueles que acreditam nela escolherem criar uma. Mudanças tecnológicas e econômicas têm que continuar, continuam e continuarão a fornecer um ambiente cada vez mais adequado para comunidades sem estado. Podemos ver isto chegando uma vez que, em todo o mundo, há cada vez menos a percepção de se precisa de um protetor militar para não morrer de fome. E sem o apoio de cidadãos que sintam que eles têm que ter proteção militar, se torna mais difícil para um estado incutir o medo necessário para coagir o apoio de todas as outras pessoas. Então associações voluntárias, incluindo associações familiares, se tornarão mais comuns.

É provável que, em uma nação livre, alguns indivíduos escolham formas famílias moldadas sobre o modelo idealizado de família nuclear atualmente promovido por políticos em muitos estados. Outros poderiam adotar padrões muito similares àquelas de caçadores-coletores. Outros ainda provavelmente formarão afiliações familiares do tamanho de clãs ou de tribos. Não podemos prever exatamente como isso acontecerá. Mas podemos observar como, na ausência da coerção estatal, muitos padrões familiares parecerão mais atraentes do que o são agora.

A educação era originalmente um processo muito informal, fornecido exclusivamente pela família. Na maior parte das sociedades modernas, o estado recruta uma maioria das crianças para um sistema educacional administrado pelo estado. Em uma nação livre, mais pessoas escolheriam fornecer às suas próprias crianças uma educação com base familiar. A família pode ser organizada como uma família nuclear, mas poderia também ser uma família estendida ou clã. E, se for assim, o clã poderia não estar limitado a parentes de sangue, mas poderia ser embasado em laços de religião, residência ou afiliação ocupacional. Comunidades do tamanho de clãs intimamente associadas podem até ser organizadas simplesmente para oferecer oportunidades educacionais de qualidade para as crianças.

A produtividade econômica foi, em muitas épocas e lugares, coordenada pelas famílias. Fazendas familiares, empresas familiares e outras ocupações familiares tradicionais ainda desempenham uma parte reduzida nas economias modernas. Seria razoável esperar mais dessas em uma nação livre. Empresas familiares do tamanho de clãs poderiam se tornar muito comuns. Adicionalmente, os padrões de assistência financeira entre membros da família poderiam se tornar mais comuns do que são nas sociedades estatistas modernas. Muitos imigrantes, especialmente os asiáticos, com fortes tradições de clãs acham possível se alçarem à prosperidade nas economias industriais do Ocidente, congregando suas poupanças e investindo estas em empresas familiares.

Novas tecnologias aumentaram as oportunidades para indivíduos prosperarem conduzindo atividades profissionais com parceiros de negócios muito distantes. Até muito recentemente, os indivíduos frequentemente precisavam realocar suas residências para longe das raízes familiares tradicionais a fim de perseguir carreiras atraentes. Agora carreiras em espaço virtual permitem negócios em casa. Pessoas que desejam manter contato com parentes de sangue ou que desejam formas novas famílias com laços não-sanguíneos podem mais facilmente residir com sua escolha de membros da família, independentemente de com quem fazem negócios. Para estas pessoas, empresas familiares podem não ser atraentes, mas muitos membros da família poderiam morar a distâncias caminháveis uns dos outros. Clãs embasados em um estilo de vida comum reforçado pela residência comum poderiam se tornar populares desta forma. O zoneamento imobiliário do estado torna isto impraticável na maioria das áreas residenciais das sociedades industriais modernas, mas uma nação livre poderia ser bastante diferente.

Além de educação e habitação, os clãs podem se beneficiar de compra comum de outros bens e serviços. Considere, por exemplo, um plano de saúde em grupo para uma família muito grande. Números absolutos podem conseguir uma taxa de seguro melhor para o grupo. Adicionalmente, vários serviços de atendimento domiciliar poderiam ser arranjados mais eficientemente. O cuidado de todas as faixas etárias seria reforçado pelo fato de que a anamnese seria de conhecimento comum e pelo fato de que a atenção domiciliar para os familiares incapacitados poderia ser fornecida ao fazer com que vários dos outros membros tirassem um pouco de tempo livre cada um para ajudar. Nos estados-nações modernos as leis frequentemente dão a grupos com licenças de incorporação emitidas pelo estado um tratamento favorável do qual as famílias poderiam gozar se permitidas negociar arranjos completamente voluntários com profissionais e seguradoras de saúde.

Questões de estilo de vida estão, claro, muito mais abertas à escolha individual em uma nação em que o estado não usa impostos e regulamentação para favorecer um conjunto de práticas sobre outra. Nós na América temos todos familiaridade com controvérsias modernas sobre práticas de casamento "modernas". Mas devemos também considerar como possibilidade os muitos costumes seguidos pelas famílias humanas desde os dias dos caçadores-coletores. E, conforme fizermos isso, veremos que provavelmente haverá muito mais inovações enquanto novas famílias emergem para enfrentar os desafios dos tempos futuros. Se você estiver interessada em estimular sua imaginação sobre este ponto, apenas encontre um livro sobre "tradições de parentesco" na seção de antropologia de uma boa biblioteca. Você verá que, como eu mencionei no começo deste ensaio, a lista de possibilidades é gigante.

O ponto de uma nação livre, no entanto, é exatamente esse - tornar toda uma lista do que foi voluntariamente escolhido no passado, assim como qualquer arranjo voluntário concebido no futuro, disponível para cada indivíduo. Δ

domingo, 1 de novembro de 2015

Do Imediatismo

Do Imediatismo
por Uriel Alexis

Há pessoas que acreditam que o passado é melhor que o presente, lhes chamamos de "pessimistas", "retrógradas" e "reacionárias". Há pessoas que acreditam que o futuro é melhor que o presente, lhes chamamos de "otimistas", "progressistas" e "revolucionárias". Há, contudo, uma terceira posição: a que acredita que não há tempo melhor que o presente. Chamemos-lhes "imediatistas", por ora.
Pessoas imediatistas são as que acreditam que as coisas são melhores se feitas sem intermediários. Que creem que o melhor contato é o direto. Que o melhor momento e o melhor lugar para agir é aqui e agora. Que a melhor forma de agir é a autônoma e independente e que agir é melhor que esperar.
Elas não olham para o passado com ressentimento ou nostalgia, buscando prever o futuro através dele. Não olham para o futuro com ansiedade ou antecipação, buscando regras universais para entendê-lo. Elas não fazem historiografia nem adivinhação. Não expiam pecados passados, tampouco aguardam a escatológica redenção.
Elas, pelo contrário, tiram suas teorias da prática. Buscam entender as condições atuais e o que pode ser mudado. Desejam uma descrição local e pragmática do que precisa e pode ser feito. Descobrem sua moral em suas relações imediatas, e não em construções abstratas. Regozijam na experiência direta dos sentidos e da  alma. Não restringem sua animalidade como algo impuro. Transcendem na imanência. Veem Deus na Natureza.
Sem representantes e canais, resolvem e conversam sem pedir permissão. A autoridade lhes incomoda pois lenta. O planejamento lhes é inútil porque atravanca. ‘Organização é supressão’, Nick Land afirma. Seu comportamento caótico lhes é a ordem necessária. Exploram e perscrutam o mundo material sem regras. Especulam sobre o fluxo do rio estratificado de intensidades que corre da origem do tempo ao desconhecido, e lhes perpassa e nelas se represa apenas momentaneamente. Essa existência humana lhes é tão pouco cara quanto qualquer outra. Lhes importa o processo, a experiência.
Por sua  rejeição da mediação, podem ser chamadas "imediatistas". Por sua paixão pelo agora e pela ágora - onde se vêem como Diógenes -, podem ser chamadas "agoristas". Por seu desejo de exploração do mundo, podem ser chamadas de “realistas especulativas”. Por sua rejeição da autoridade e das regras, podem ser chamadas “anarquistas”.
Que venham.