domingo, 20 de setembro de 2015

Radiante e Ensolarado

Radiante e Ensolarado
por Uriel Alexis


Em todas as coisas da natureza existe algo de maravilhoso.
- Aristóteles, Das partes dos animais


Devemos ser otimistas. Se não por nada, pelo menos porque já o somos a todo momento, dado que estamos vivas. As únicas verdadeiras pessimistas estão mortas. Viver é a todo momento escolher e ter esperança de que estamos certas, acreditando que nossas ações darão certo. Por certo, ter esperança não é ficar à espera. Esperança é ação: nós definimos uma ação, por um salto de fé, e a levamos a cabo, por um salto de esperança. Manter, de outra maneira, a crença de que as coisas não irão como esperado, ser uma pessimista, é cair em contradição: como pode você ainda estar viva e agindo então? Mantê-la por um longo tempo é assumir a postura de um zumbi: um verdadeiro vivo morto, dado a vagar pelo mundo na esperança de um evento para dizer: eu disse a todas vocês!


Mas eu não quero fazer esse ponto um tanto metafísico, sobre por que o otimismo é bom. Eu quero, antes, fazer um ponto um tanto mais aparentemente difícil: de que temos boas razões para sermos otimistas no século XXI.


Podemos começar um nada pequeno milagre: o declínio constante da pobreza material por todo o mundo. Os meios técnicos em nossa sociedade não foram tão abundantes em relação às necessidades percebidas desde os dias do paleolítico, e todas as pessoas - sim, eu realmente estou falando de todos os seres humanos na terra - provavelmente estarão, se a atual tendência for mantida, acima da linha da pobreza até o fim deste século.


Depois, provavelmente a coisa atualmente mais óbvia, agora podemos nos comunicar de forma mais rápida e mais ampla do que nunca. Somos capazes de nos manter em contato com literalmente milhares de pessoas por dia, e frequentemente o fazemos. Nesta revolução em rede da interação social, assoma a oportunidade crescente de empatia, de encontrar pessoas que lhe entendem e do entendimento de novas pessoas enquanto uma necessidade para a sobrevivência contínua. Nunca fomos tão próximas e calorosas em uma escala tão global. Agora nos importamos, não apenas com nossa família e amigas locais, mas com toda uma série de amigas muito distantes (que, por sua vez, se importam elas próprias com toda uma rede de pessoas) e com completas estranhas. Temos simpatia para com as chinesas exploradas em fábricas de suor de uma forma que Adam Smith jamais poderia ter sonhado. Ficamos repugnantemente chocadas com tentativas de dominação e demonstrações de violência, como se as vítimas fossem nossas conhecidas próximas (bem, dado tempo o suficiente, de fato elas poderiam ter sido suas amigas no Facebook).


Além disso, agora entramos em contato com uma quantidade gigantesca de opiniões diferentes sobre basicamente qualquer assunto, todos os tipos de tons de cor e matizes, todos os tipos de dietas, música, arte, filmes, filosofias, valores, linguagens, culturas, conhecimento e assim por diante. O diferente, o outro está cada vez mais presente em nossas vidas diárias, incitando mudanças em nossos hábitos e ações cotidianas - ou, para colocar melhor, em nossa estrutura social. A diferença é um valor, algo a ser preservado? Eu lhes digo que é o único caminho para a liberdade. A diferença é incerteza. É o desconhecido, o pouco familiar, o imprevisível, lhe olhando na face, vestido de preto - "o que está por trás deste semblante esquisito? como responderei?". E a incerteza é liberdade. O mero ato da escolha - a própria constituição da liberdade como tal - está fundamentalmente enraizado em não sermos capazes de predizer as consequências com certeza - se soubéssemos com certeza de onde nossas escolhas vieram e para onde estão indo, não haveria experiência de escolha. Então, se a liberdade é um valor, assim o é a diferença.


A principal preocupação na era da informação, me parece, tem sido se nós realmente conseguimos passar por uma onda tão grande informação. Parecemos estar indo muito bem. Nossas redes filtram o fluxo de informação para nós, a velocidade incessante e a ampla conectividade certificam-se de que não fiquemos presos em bolhas a menos que de fato batalhemos duro por isso (caso no qual, qual é o problema?). Voltaire estava errado sobre esta, a multidão de livros (eletrônicos) (e blogs, e notícias, e posts, etc) nos deixou mais espertas, não mais ignorantes.


Até aqui o futuro parece brilhante para nossa era: diferença, empatia e liberdade. Mas vamos nos sujar, vamos entrar na política. Embora aqui também parece que temos perspectivas realmente boas. A organização em rede permitiu maneiras completamente diferentes para se pensar e fazer política que, embora tenham sido imaginadas antes (principalmente por anarquistas individualistas), não tinham qualquer substrato material ao qual se agarrar. Criptomoedas, impressoras 3D, contratos inteligentes, administração enxuta, a própria Internet, todas permitem e de fato quase exigem arranjos horizontais e cooperativos, descartando a hierarquia como ineficiente, irracional e desorganizada. Anarquia é ordem, disse Bellegarrigue há mais de 150 anos. Agora soa como uma profecia. A revolução estigmérgica, como tem sido chamada, fornece os meios através dos quais podemos vislumbrar a ordem social de diferença pacífica, igualdade social, liberdade individual e ajuda mútua tão proclamada pelas anarquistas ao longo dos séculos XIX e XX. Nesta tecnoutopia libertária, pessoas são corporações, em termos de empoderamento.


Há mais: podemos vislumbrar uma vida de movimento constante, conexão com a natureza, inovação imprevisível, amplo compartilhamento de informação, trabalho transformado em arte e relações humanas intensas. O surgimento e retorno de um etos de habilidade e engenho individual permitem uma vida semi-nômade, uma dieta embasada em comida menos industrializada e mais saudável e uma produção sem destruição ambiental através de técnicas tais como a permacultura, a bioconstrução, a produção p2p e crypto-transações, como Kevin Carson e outros vem fazendo um grande esforço para transmitir.


A desescolarização da sociedade que Illich desejava está acontecendo agora cada vez mais rápido. A informação se espalha rapidamente através de nossas redes sociais e aprendemos cada vez mais guiadas por nossos próprios interesses do que através de currículos fornecidos por "mestres". Com esta liberdade vem a nudez da alma: esforços criativos, comumente incitados por sua pura diversão, contribuem para ainda mais mudanças. Conforme a realidade se acelera, somos propelidas em direção à realização de que o valor é a importância de nossas ações conforme reconhecidas por aquelas com que nos importamos (o que cada vez mais tende a "todo mundo").


Este quadro parece ótimo, pelo menos para aquelas de nós que não tenham medo de mudanças constantes e imprevisíveis. Para que eu não fique calado sobre o lado feio de tudo que há, vamos "cair na real" (ou melhor, vamos tentar olhar isso através dos olhos da pessimista): é verdade que teremos lutas e violência e ódio, e talvez a noite parecerá muito mais escura justamente antes do amanhecer. Existem muitos conflitos em andamento no mundo (menos do que jamais houveram, no entanto), derramando sangue inocente e mandando para longe de casa milhões de pessoas. E, conforme nossas instituições modernas falhem sob o peso das crises que criaram, muitas disputas mais podem surgir. Eu não espero realmente efetuar uma mudança sem qualquer tipo de conflito, muito pelo contrário "é o choque de ideias que lança a luz". Como Katherine Gallagher, citada por Carson, coloca:


Para mim, trata-­se de esticar nossas redes do que é possível através de fronteiras, de descentralizar... "Nós" seremos transnacionais e distribuídos. Não seremos cercados por "eles", mas entrelaçados por entre suas estruturas antiquadas, impossíveis de sermos colocados em quarentena e liquidados. Eu não sou uma pacifista. Eu não sou mesmo contra a violência defensiva. Essa é uma questão separada para mim, de derrubada. Mas para simplificar demais, quando se tratar de violência, eu quero que seja a última resistência de uma ordem se desintegrando contra uma ordem emergente que já fez muito do trabalho duro da construção seus ideais/estruturas. Não revolucionários violentos, certos de que sua sociedade será viável, prontos para construi­-la, mas uma sociedade se defendendo contra mestres que não mais a governam. Construa a sociedade e a defenda, não avance com as armas e tente produzir a anarquia nos escombros. Eu acho que a tecnologia está cada vez mais colocando a possibilidade de resistência significativa e de independência trabalhista dentro do domínio de um futuro significativo. Muitos dos meios de nossa opressão estão agora mais suscetíveis a serem duplicados em uma escala humana (e muito da guerra de patentes parece visar impedir isso). E eu acho que deveríamos estar trabalhando em como planejamos criar uma indústria paralela que não é mantida apenas por aqueles poucos. Cada vez mais os meios de manter essa indústria, guardada apenas para poucos, estão dentro do domínio da lei de patentes. Não é mais verdade que os poucos possuem o "torno", por assim dizer, tanto quanto que eles possuem a patente dele. Então nós realmente poderíamos conseguir mais criando uma produção alternativa real do que capturando essa alternativa já construída. Sim, haverá violência de proteção, mas não é tão verdade quanto o era no passado, de que há meios realmente necessários de produção nas mãos de poucos. O que eles controlam mais agora é o acesso aos métodos de produção e tentam impedir esses métodos de serem usados fora de sua supervisão. Novamente, eu não estou dizendo que os "últimos dias" do estado não serão marcados pela violência. Mas estou dizendo que agora temos opções táticas reais além de confrontá-los diretamente até que eles venham a nós.

Eu não quero parecer aqui que estou dizendo "tudo está bem, vamos sentar e relaxar e esperar" (bem talvez sentar e relaxar seja uma boa em alguns momentos). A esperança e o otimismo, como eu disse, implicam em ação. O que estou dizendo é que estamos perfeitamente dispostas e capazes de resolver nossos atuais problemas e os problemas que surgirão no futuro próximo de maneiras criativas, belas, pacíficas e voluntárias. Nossa revolução é uma revolução de paz, de mudança radical através de meios voluntários. De fato é uma revolução nas revoluções: a primeira vez que podemos realmente pensar em uma mudança massiva na estrutura social sem a necessidade de homens armados e altos chefes. O que estou falando é, antes, um chamado a ação: temos as ferramentas, temos o desejo, estamos em um caminho bom e promissor, vamos olhar adiante com esperança e otimismo e fazer o que acreditamos "pois o mundo fica mudo a cada alma que abdica". Após o amanhecer, estará tudo radiante e ensolarado.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Ideia Geral da Revolução no Século XXI

Ideia Geral da Revolução no Século XXI

A humanidade teve que viver e a civilização se desenvolver, por seis mil anos, sob este sistema inexorável, cujo primeiro termo é o Desespero e o último a Morte. Que poder secreto o sustentou? Que força permitiu que ele sobrevivesse? Que princípios, que ideias, renovaram o sangue que fluía adiante sob o punhal da autoridade, eclesiástica e secular?

O mistério está agora explicado.

Debaixo da máquina governamental, à sombra das instituições políticas, fora da vista de estadistas e padres, a sociedade está produzindo seu próprio organismo, lenta e silenciosamente; e construindo uma nova ordem, a expressão de sua vitalidade e autonomia e a negação da velha política, assim como da velha religião.

- Pierre-Joseph Proudhon, Ideia Geral da Revolução no Século XIX (1851)

Começamos a ver a fraqueza de hierarquias, suas rigidezes quebradiças rachadas e esmigalhadas por redes de indivíduos voluntariamente envolvidos. A acuidade das palavras de Proudhon, os entendimentos aparentemente insondáveis contidos nelas, se tornaram mais salientes do que nunca, falando diretamente a movimentos como Occupy, Anonymous e a Primavera Árabe. A revolução, pelo menos em sua forma incipiente, já está bem encaminhada e se ela continua em ritmo acelerado ou definha girará, em grande parte, em torno do dinamismo da mensagem radical da liberdade.

De fato, se essa mensagem deve apelar aos 99%, a quase todo mundo na sociedade, devemos demonstrar a vitalidade do anarquismo enquanto um movimento animado, crescente e misto, composto de pessoas reais com gostos, interesses e inclinações muito diferentes. Como diz a frase comum, "Alguns de nós gostamos de azeitonas, e alguns de nós não".

Se tornará cada vez mais importante justapor as (atualmente hipotéticas) economias por nascer como uma liga dessas diferentes inclinações com a economia corporativa do presente. Esta última, artificial no sentido de ser tanto fabricada quanto imposta pela violência, é uma sanguessuga sobre o verdadeiro organismo social e profundamente hostil a seu desenvolvimento.

Para amadurecer apropriadamente, no entanto, escapando das atrofias da subnutrição, cada comunidade deve, nas palavras de Jeff Shantz, "forjar um conexão orgânica com outras comunidades". A força do estado - e, por conseguinte, aquela da classe dominante - depende criticamente de dividir uma da outra aquelas cujos interesses materiais estão de fato alinhados e, correlatamente, fomentar entra as classes produtivas um carinho ou afeto pelas elites.

Como dramaticamente apresentado por Orwell em 1984, este era o fenômeno das pessoas da Oceania, que genuinamente amavam o Grande Irmão, considerando-o em muito mais alta estima do que mesmo seus próprios parentes. Relacionamentos familiares e comunitários eram vistos - bem como o são em nossa própria sociedade, embora talvez menos obviamente - como que ameaçando minar o poder do Partido.

Durante o movimento da Era Progressista em direção a um sistema educacional governamental mais centralizado, as escolas paroquiais eram similarmente difamadas como focos de pensamento "alienígena", como subversivas ao "American way". Tentativas do começo do século XX de tornar obrigatória a matrícula em uma escola do governo (tornando, assim, outras escolas obsoletas) estão atualmente em sua maior parte esquecidas. Toda e qualquer alternativa à atual corrente central, quaisquer caminhos existentes fora do estame ou centro nervoso da hierarquia corporativa-estatal, foi atacada com unhas e dentes pela política pública.

Esses ataques, é claro, sempre surgiram sob a bandeira da segurança pública, denominados como proteção de um público modesto do charlatanismo de métodos ou práticas "marginais". Favorecidas, em vez disso, foram aquelas "melhores práticas" prescritas por nossos zelosos guardiões e formuladas em parcerias de nossos governantes empresariais e governamentais. Qualquer esforço dentro do político necessariamente fortalece tais couraçadas parcerias, cimentando ainda mais em seu lugar os "canais apropriados" ante os quais devemos nos genuflectir. O caminho adiante, então, ao invés de abraçar a pretensão estatal de democracia, é montar, expandir e reparar o que Shantz denomina de "infraestruturas revolucionárias pré-existentes".

A teoria e prática do anarquismo, que muito frequentemente pareceram estender as mãos uma para a outra inutilmente, estão se encontrando e se casando em meio à evolução social e a uma florescente consciência de classe. Os protestos do momento criticam, não qualquer peça de legislação, ou guerra, ou injustiça, mas todo um paradigma social e econômico - por mais vagamente definidas que as críticas das manifestantes a ele sejam.

Sem necessariamente aconselhar qualquer programa ou ideologia, solução ou caminho a seguir, o organismo social está começando a sentir seu poder, se preparando para vir à tona debaixo do fardo da autoridade. Mas, em meio às tentações de apressar o momento de vivificação, devemos lembrar, nas palavras de Wordsworth Donisthorpe, que "a liberdade é um lento desenvolvimento. Deve ser trabalhada nas presente linhas sem qualquer quebra de continuidade ou cataclisma artificial".

A revolução violenta, Donisthorpe entendia, não era nenhuma revolução que fosse e poderia apenas atrasar "o resultado final da evolução social". Não apenas a violência é pouco prática e contrária à meta da liberdade total, ela é também bastante desnecessária para a realização dessa meta.

O sociólogo Manuel Castells descreveu "uma crise da legitimidade política" germinando atualmente no mundo, enraizada em "redes horizontais de comunicação". Estas redes ameaçam aqueles relacionamentos comunicacionais "verticais" que até agora haviam dominado os sistemas social e econômico predominantes. Onde a própria língua já pode ser contida - e assim ditada - por um pequeno grupo de formadores de opinião cultural no governo e na academia, a Era da Informação proclamou um genuíno "mundo plano" (que, incidentalmente, não tem nada a ver com o neocolonialismo brutal do capitalismo global, entusiasticamente descrito por Tom Friedman).

Este "novo mundo"  (se você perdoar a expressão) é um em que o poder de tomada de decisão centralizado simplesmente não funciona; nunca funcionou, claro, mas por causa das novas tecnologias e das agora indomáveis percolações de informação, a fina fachada de legitimidade do estado lascou e manchou.

Os métodos das ativistas têm refletido a tendência geral em direção ao que o antropólogo Jeffrey S. Juris chama de "a lógica cultural das redes", algo que ele considera inextricavelmente interligado ao anarquismo e à sua história. Juris identificou pelo menos quatro concretizações desta "lógica" ou tendência: "(1) a construção de laços horizontais entre elementos diversos e autônomos, (2) a livre e e aberta circulação de informação, (3) a colaboração através da coordenação descentralizada e da tomada de decisão por consenso e (4) as redes auto-dirigidas".

Os quatro fenômenos que Juris enumera correspondem de perto às observações de outras acadêmicas da cultura de redes tais como, por exemplo, Siva Vaidhyanathan e o próprio Kevin Carson do Centro por uma Sociedade Sem Estado. O modelo econômico consoante com a lógica cultural do jovem século, aquele que representa um afastamento radical do capitalismo, é a filosofia da igual liberdade advogada pelos individualistas do século XIX.

A força dos mercados libertos é que, ao contrário do capitalismo contemporâneo, eles são categoricamente hostis a hierarquias, ao salarialismo e a burocracias monolíticas estagnantes que são hoje falsamente associados com "o livre mercado". Trocas livres e mutuamente benéficas, realizadas em um ambiente sem diferenças de poder de barganha coercivas e mantidas institucionalmente, são uma força igualitária que gera um equivalente econômico do equilíbrio osmótico.

Para que a riqueza se acumule nas mãos de alguns poderosos, o comércio deve ser limitado e não emancipado, o livre movimento de pessoas e bens amarrado dentro de estruturas deliberadas. A consideração de livres mercados genuínos desta maneira - como um meio de desjungir a classe trabalhadora da classe dominante - não é nem mesmo única de manifestos socialistas livre mercadistas como Benjamin Tucker.

A historiadora da UC Berkeley Annelien De Dijn, uma especialista sobre os "cambiantes significados do conceito de liberdade", escreveu extensivamente sobre radicais franceses (por exemplo Charles Comte e Charles Dunoyer) que viam os livres mercados como parte de uma "sociedade nivelada". Seu livre mercado era inóspito para os ociosos ricos que lucravam da labuta do trabalho, um tumultuado e fluido turbilhão de atividade que constantemente erodiria tentativas de explorar ou monopolizar. O próprio Comte protestava com segurança contra a "classe ociosa e voraz", estabelecendo-a em nítido contraste com "a classe industriosa". Essa era uma época em que a defesa consistente e de princípios da troca voluntária e da propriedade legítima era considerada perfeitamente compatível com um populismo espirituoso e com o respeito pelo trabalho.

De fato, a medida em que visões da "sociedade industrial", embasada em recompensar apenas a atividade produtiva, influenciou e cultivou o que se tornaria o socialismo francês tem sido amplamente documentada. E, assim como os liberais franceses empregaram ideias libertárias para condenar o roubo da antiga nobreza, indivíduos americanos se engajaram com o livre mercado para atacar o assim chamado capitalismo laissez faire do século XIX nos Estados Unidos. Apenas mais tarde o capitalismo foi confusamente remodelado como sinônimo, em vez de antitético, dos verdadeiros livres mercados.

Como o Professor Christopher Newfield escreveu em The Emerson Effect: Individualism and Submission in America:

O livre mercado não é o capitalismo por si próprio; transações auto ou localmente reguladas são compatíveis com muitos diferentes padrões de propriedade e relações econômicas. O mercado sob o capitalismo tem que fazer mais do que a troca, no entanto, pois ele tem que formar capital através de um bem conhecido processo de acúmulo. O mercado capitalista deve extrair valor da circulação, deve impedi-lo de circular indefinidamente (ênfase adicionada).

Todas as pessoas que sinceramente desejam ver o escopo da liberdade humana se expandir - que tomam o compromisso libertário como algo real e capaz de uma transformação social profunda - são obrigadas, eventualmente, a abandonar seus próprios gostos estéticos em relação ao que uma sociedade livre será.

Isto não é argumentar que não temos controle sobre o que ela será, mas antes sugerir que, na medida em que nossos princípios representam um afastamento radical daqueles que agora governam o dia, o resultado da aplicação destes princípios podem não ser o que esperamos ou predizemos.

Além disso, todas as anarquistas deveriam tomar um grande cuidado em lembrar que todo e qualquer princípio que toque em, por exemplo, direitos individuais ou sistemas de propriedade são meramente tentativas de carregar preocupações subjacentes sobre autonomia e soberania humanas para a realidade prática. Certamente noções de acordo, harmonia e respeito mútuo devem preceder a construção de sistemas discretos de algo como a propriedade - em contraste com sujeitar esses princípios fundamentais a esquemas inflexíveis de algum modelo libertário fixo.

Redes facilitadas pela tecnologia deram um novo significado para a ação direta, expandindo as possibilidade de um futuro mais livre e abrindo mentes para o potencial do consenso como um organização de governo (e, assim, como uma alternativa ao estado). Ao discutir "o papel funcional que o consenso desempenha ao se produzir a ação coletiva", o anarquista Uri Gordon enfatizou o poder da Internet em "permitir uma participação mais quase igual" no crescimento dos movimentos sociais.

O resultado próximo tem sido remover complexas questões sociais do controle exclusivo de elites e da inércia de seu conjunto central de interesses. A sociedade está se afirmando, sem se deixar abater pelas convulsões violentas de um grupo indisposto de tiranos; este século é nosso, não deles. Seu governo e seus sistemas exploradores serão uma relíquia de um tempo em que eles podiam manter a informação engarrafada - quando eles podiam impedir a consciência de classe de florescer. O ímpeto está com a liberdade e a revolução é nossa, para valorizamos ou negligenciarmos.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A Revolução Estigmérgica

A Revolução Estigmérgica
Por muito tempo se acreditou que a rainha desempenhava um papel central na complexa ordem social de uma colônia de formigas, através do exercício do comando direito e do controle sobre suas súditas. Não é assim. O biólogo Pierre-Paul Grasse cunhou o termo "estigmergia" para a organização social do formigueiro. Não há nenhuma coordenação central, nenhuma hierarquia, nenhum mecanismo administrativo. O comportamento de cada formiga é inteiramente espontâneo e autodirigido, conforme ela responde de forma independente aos marcadores químicos de trilha deixados por outras formigas.

Mark Elliot, cuja dissertação de doutorado é provavelmente o melhor estudo sobre o assunto até hoje, aplicou o termo "estigmergia" a qualquer forma de socialização humana na qual a coordenação é alcançada, não pela negociação, administração ou consenso sociais, mas inteiramente pela ação individual independente contra o pano de fundo de um meio social comum.

Essa é essencialmente a forma organizacional usada pela comunidade desenvolvedora do Linux, por movimentos de resistência em rede como a rede global de apoio às Zapatistas dos anos 1990 e pelo movimento anti-globalização pós-Seattle. É a maneira como a Wikipédia e a al Qaeda são organizadas.

Eric Raymond, escrevendo sobre a comunidade de software open source, a chamou de o modelo "Bazar". Sob o modelo Bazar, cada contribuição individual é modular. Toda participante é auto-selecionada e sua ação é baseada inteiramente em seu julgamento independente do que precisa ser feito. Assim, todas as ações não são o resultado de consenso ou do consentimento da maioria, mas do consentimento unânime de todas que participam. Aquelas com o nível mais alto de interesse em um aspecto particular de um problema e com a mais alta afinidade para encontrar uma solução funcional contribuem com essa parte do projeto.

Em movimentos em rede, qualquer contribuição ou inovação desse tipo em uma única célula só será adotada por aquelas que a acharem valiosa. Aquelas que são consideradas valiosas instantaneamente se tornam propriedade de toda a rede, livres para a adoção por todas. Assim, os indivíduos auto-selecionados mais interessados em resolver problemas estão espontaneamente desenvolvendo soluções inovadoras por toda a rede e aquelas soluções que funcionam imediatamente ficam disponíveis para adoção por cada célula decidindo apenas por si mesma.

Como Cory Doctorow aponta, as gravadoras desenvolveram seu DRM na crença errônea de que ele só tinha que ser forte o suficiente para deter a usuária média e que o pequeno número de geeks capazes de quebrá-lo seria economicamente insignificante. Mas, na verdade, só é necessário uma geek para quebrar o DRM e postar um MP3 em um site de download por torrent e ele fica livremente disponível para as usuárias médias. Em uma organização estigmérgica, a inteligência de cada uma se torna propriedade de todas, virtualmente sem quaisquer custos de transação.

Em contraste com uma organização administrada hierarquicamente, em que as inovações propostas devem ser avaliadas e deliberadas - gestadas - por uma autoridade central ao longo de um período de muitos meses, uma rede estigmérgica atravessa mudanças geracionais na práxis com a velocidade de uma levedura replicante.

Isso é exatamente o que aconteceu com os movimentos sociais do último ano e meio - o arco desde a liberação de telegramas da Wikileaks no verão de 2010 até os últimos desenvolvimentos no Occupy Oakland. Bradley Manning, um heroico soldado moralmente estarrecido pelas atrocidades cometidas pelas forças dos EUA no Iraque, alegadamente tomou para si liberar centenas de milhares de telegramas diplomáticos sigilosos para o Wikileaks. O Wikileaks decidiu postá-los na Internet.

Em face das tentativas de fechar o Wikileaks confiscando seu nome de domínio ou cortando vetores de financiamento como PayPal, o mecanismo de inovação estigmérgico entrou em alta velocidade. Milhares de sites de espelhamento brotaram em todo o mundo. Milhares mais de websites e blogs postaram os endereços IP numéricos para os sites do Wikileaks. E hackers como Rick Falkvinge do The Pirate Bay imediatamente começaram a pensar sobre um serviço aberto de nome de domínio e sistemas digitais abertos de pagamento.

Os telegramas do Wikileaks incluíam avaliações diplomáticas privadas do nível de corrupção no governo Tunisiano, que foram rapidamente circuladas através do Facebook entre a comunidade dissidente. Mohamed Bouazizi, um pobre vendedor de vegetais na Tunísia, ateou fogo a si mesmo em protesto após ser estapeado na cara por um oficial do governo, iniciando uma revolução que derrubou diversos governos árabes e, desde então, se espalhou de Londres e Amsterdam para a Espanha, para a Grécia e Israel, para a Madison e Wall Street - e daí novamente de Wall Street para centenas de cidades ao redor do mundo.

A tentativa do Egito de destruir a revolução desligando a Internet induziu projetos como a ContactCon a um novo sentido de urgência em desenvolver uma "NextNet", um rede mesh aberta global que não possa ser desligada porque os únicos nós de roteamento são o próprio hardware das usuárias nas pontas.

O próprio movimento Occupy opera estigmergicamente, com inovações desenvolvidas por um nó se tornando parte do conjunto de ferramentas comum do movimento total. Alguns manifestantes em Oakland fizeram o primeiro experimento em ocupar um prédio comercial vazio e encorajar os sem-teto a ocupar construções vazias e condenadas em toda a cidade. Elas fizeram isso de uma maneira desajeitada e imprudente, infelizmente, provocando uma cruel repressão da polícia.

Mas a ideia básica permanece e alguém logo o fará melhor - porque esta é a maneira em que a estigmergia trabalha. Por toda a América, ainda existem prédios comerciais vazios e casas de propriedade de bancos e milhões de pessoas sem teto que precisam de um lugar pra dormir. Não existe polícia e vice-xerifes suficientes no mundo para impedi-los de se mudarem, se eles colocaram em suas cabeças de começar a se mudar por sua própria iniciativa.

Além disso, os sem-teto não têm nada a perder - se forem expulsos, ele estiveram abrigados pelo período de tem em que durou. E cada despejo se torna outro ponto de falha para o sistema, a ser divulgado com vídeos de celulares e cobertura streaming na Internet. Cada casa se torna o local de outra posição defensiva, outro pesadelo de RP para as "autoridades" locais arrastando famílias para fora de seus lares diante dos olhos do mundo. O movimento de Minneapolis já se interpôs em defesa da proprietária removida Monique White.

É apenas uma questão de tempo até que os movimentos Occupy locais se tornem centros de inovação, não apenas em táticas de protesto, mas em novas formas de organização social nas comunidades em que vivem. Em comunidades por todo o país, as pessoas perceberão que são vizinhas que vivem na mesma cidade ou município - não há qualquer razão pela sua cooperação tenha que estar limitada ao parque ou praça da cidade.

O Occupy se tornará não apenas um movimento de protesto, mas uma escola para a vida: Sistemas locais de moeda e escambo para a troca de habilidades por parte de pessoas desempregadas, técnicas informais e caseiras de pequenas escala para trabalhadoras desempregadas que precisam prover tantas de suas necessidades quanto possível através do auto-provisionamento, técnicas horticulturais intensivas como a permacultura - as possibilidades são infinitas.

O Occupy Wall Street recentemente se tornou uma aula pública, com Michel Bauwens da Foundation for P2P Alternatives falando no Zuccoti Park sobre peer-production como um mecanismo para criação de valor e Juliet Schor discutindo ideais econômicos descentralistas e DIY em seu livro Plenitude. Uma personagem em Woman on the Edge of Time de Marge Piercy diz que o novo mundo, a revolução, não foi construído com slogans e grandes reuniões. Ele foi construído por pessoas que encontraram novas maneiras de se alimentarem, novas maneiras de ensinarem suas crianças, novas maneiras de se relacionaram umas com as outras.

Assim, em todo o mundo, estamos descobrindo maneiras de viver sem a terra e o capital das classes que pensam que são donas do planeta, maneiras de tornar sua terra e capital inúteis para elas sem ninguém para trabalharem-na para elas. E elas não podem nos parar, porque não temos nenhum líder.

Nas palavras de Neo, em "The Matrix":

"Eu sei que vocês estão com medo... vocês tem medo de nós. Vocês tem medo da mudança. ...Eu não vim aqui para lhes dizer como isso vai acabar. Eu vim aqui lhes dizer como vai começar. ...Eu vou mostrar a essas pessoas o que você não quer que elas vejam. Eu vou mostrar a elas um mundo sem vocês. Um mundo sem regras e controles, sem fronteiras ou limites. Um mundo em que qualquer coisa é possível."

Ou mais sucintamente, como Anonymous coloca: Nos espere.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Leve-me ao rio...

Leve-me ao rio...


Digamos que reunimos os suspeitos usuais, na beira do rio, no Estado de Natureza, ou lá por perto, para um pouco de teoria de propriedade e alguns "bons goles". John Locke diz que todo mundo pode se apropriar de um pouco da água do rio, contanto que o que eles tornam sua própria "propriedade" deixe "todo um rio da mesma água". Ora, Locke tem uma reputação de dizer coisas como "meu trabalho" quando talvez ele queira dizer o trabalho de alguma outra pessoa, então há alguma hesitação, mas parece um negócio bastante bom, assumindo que seja possível. Ora, em termos literais, parece impossível: uma quantidade de água, X, menos algum "bom gole" não-zero G, tem pouca probabilidade de ser = X. Mas, lá no Estado de Natureza, falando-se sobre "goles" de escala individual e um sistema-rio naturalmente resiliente, talvez seja pelo menos tão bom quanto possível.


Todo mundo, naturalmente, está preocupado. Há muito em jogo e todo mundo tem uma noção ligeiramente diferente sobre o que uma instituição de livre suprimento de água deveria fornecer ou permitir. Walt Whitman aparece no meio de um debate - atrasado; todo mundo conclui que ele esteve bebendo na maior parte da criação sem se importar em perguntar - e se pergunta do que se trata o alarido. Leodile Bera (também conhecida como Andre Leo) tenta resumir:


"Aqui, ferozes interesses se agitam; ali, uma fé um tanto amarga. É a liberdade que deve prevalecer ou a igualdade? ...Aos olhos dos partidários da liberdade, a igualdade ameaça tirania. Aos olhos dos igualitaristas, a liberdade sem igualdade não é nada além de uma mentira. Os primeiros temem o comunismo e os outros se opõem à exploração."


É tudo um pouco de confusão, ela suspeita.


"O antagonismo aparece entre dois princípios que, como as coisas estão agora, [nos] dividem e criam discórdia em [nossas] assembleias, embora eles componham pelo mesmo título seu mote e embora apenas sua concordância possa dar ao mundo justiça."


"E minha proposta não faria isso, como...?" Um personagem tão sombrio quanto Locke possa ser, ele realmente parece ter um ponto - assumindo que a coisa seja possível.


Então eles pensam sobre isso. Falam sobre isso. Joseph Déjacque está pronto para apontar a natureza circular do sistema-rio, de fato da hidrosfera planetária ou mesmo... É um tópico surpreendentemente popular, pelo menos entre alguns dos antigos socialistas, que se esforçam para sobrepujar uns aos outros em descrever a extensão de longo alcance do "circulus na universalidade". Mas, eventualmente, todo mundo fica com sede, e suas bocas começam a ficar um pouco secas com toda essa conversa de uns com os outros. Eles tentam ir ao que interessa.


Parece haver algum consenso aproximado de que, quando levado por necessidade ou desejo, o indivíduo pode tomar um "bom gole" do tamanho individual apropriado e que, contanto que a apropriação se mantenha individual e o ecossistema do rio retenha sua resiliência natural, as coisas provavelmente estão muito bem - e não apenas para beber. O indivíduo pode se banhar no rio, nadar ou jogar água por recreação, lavar quaisquer implementos que possam possuir - "E provavelmente até mijar nela", diz Georges Bataille - sem fazer com que a água do rio, como tal, se torne um bem rival. E um pouquinho de atenção para questões como saneamento, eliminação de água residual, etc., diminuiria esse perigo em particular consideravelmente. Aumentos na população farão com que o mesmo impacto individual seja relativamente maior, claro, assim como práticas que diminuam a capacidade do rio - ou da hidrosfera planetária em geral - de processar impurezas e essencialmente renovar a si mesmo.


Todo mundo está realmente com sede agora. Eles precisam de um copo d'água. Proudhon relembra a todos que "a humanidade procede através de aproximações" e eles provavelmente foram longe o suficiente para dar às coisas um pouco de experimentação. Todo mundo vai atrás de um "bom gole", mantendo um olho no que Bataille está fazendo, claro. Whitman joga um pouco de água, se banha e se admira,  - há muito dele, - ama cegamente praticamente todo o resto e, significativamente, não parece nem um pouco preocupado com Bataille. Tudo corre bastante suavemente. Locke está completamente tomado pelos resultados. "Veja. Tudo misturado". Ele tinha ouvido que algumas pessoas acham que ele simplesmente ficaria misturado com o lá-fora, mas ele parece está todo lá, mais um preenchimento de água. Ele aposta que poderia fazer isso com comida também. Para além disso, ele pode ter que proceder um pouco por analogia, mas... Os Fourieristas gostam de analogias, embora não estejam certos se gostarão da de Locke. Stephen Pearl Andrews está prestes a entrar com um pequeno sermão sobre a questão quando Max Stirner sorri para Locke e diz, "É tudo comida". Ele olha em volta. "Vocês são todos comida. Minha comida". Embora não, ele adiciona, em qualquer sentido legal. Ele ainda está sorrindo. Não é um sorriso legal. Pierre Leroux não parece notar. "Isso é justamente o que eu estava pensando. Bem, não exatamente, ou, quero dizer, literalmente. Você não... quero dizer:


E se a humanidade não entrasse no que se chama de três reinos da natureza!


Se a humanidade formasse um quarto reino, em que essa necessidade de sufocar e devorar um ao outro não existisse!


Se o modo de nutrição do homem pelo homem fosse puramente espiritual!


Se o homem pudesse nutrir a si mesmo espiritualmente de seus companheiros com igual proveito para todos!


Se o homem e seus companheiros fossem, na base, o mesmo homem. Se todos os homens formassem apenas um único homem, uma única humanidade!


Se o homem, assim consciente de sua natureza, restaurado à sua natureza, praticando sua natureza, devesse se tornar superior ao que se chama de natureza!


Se ele devesse pisotear essa serpente da destruição, essa píton, esse satã, em cujo nome os Malthusianos asfixiam o recém-nascido da espécie humana!


Se os cientistas, que falam em proporções e números e que opõem a progressão geométrica da população à progressão aritmética de sua subsistência, tivessem esquecido de considerar a progressão geométrica do capital, que se coloca como uma parede de bronze entre a necessidade da humanidade de se desenvolver e a faculdade que tem de fazê-lo!"


Ninguém sabe bem o que dizer para isso.


"Não é propriedade", diz Proudhon. "O qu...?" pergunta o Coro. "Propriedade", diz Proudhon, "é o direito de gozar mesmo na extensão do abuso, jus utendi et abutendi; isto é, o direito de emprestar com juros, - de alugar, adquirir e então alugar e emprestar novamente". Dentro de limites socialmente definidos, ele adiciona. Mesmo a "propriedade devoradora e antropofágica" é uma instituição essencialmente social.


Naturalmente, isso atiça todo mundo. Todo mundo conclui que Proudhon se diverte com isso - não que quaquer um neste grupo, exceto talvez Proudhon e Lewis Masquerier, esteja muito preocupado sobre com o que qualquer outra pessoa se diverte. De qualquer forma, ele tem um ponto. Por suas definições, este tipo de apropriação ingestiva e incorporadora é simplesmente uso. Quando tenta ser propriedade e faz uma reivindicação por mistura, só pode fazê-lo, bem, misturando as coisas que seriam propriedade e proprietário, de modo que ainda se parece com uso. Claro, pelas definições de Stirner, isso é propriedade e as instituições sociais produzem algo como "propriedade privada" e "Hey, você pode mijar nisso, Bataille...". Joseph Déjacque, um bom egoísta que não tem muita uso para instituições sociais além da instituição da liberdade, ainda não está certo de que a natureza não nos mistura muito mais do que a misturamos.


"...a morte não tem um lugar em todos os instantes das vidas dos seres? Pode o corpo de um homem preservar por um único momento as mesmas moléculas? Cada contato não o modifica constantemente? Pode ele não respirar, beber, comer, digerir, pensar, sentir? Toda modificação é, de uma só vez, uma nova morte e uma nova vida..."


Batailles gosta do som disso. "O que você chama de 'circulus na universalidade' é simplesmente a economia geral; e todas as entidades das quais você quer se distinguir - sua 'propriedade' acima de tudo - são economias limitadas que só podem reclamar uma existência separada ao custo de uma parte amaldiçoada, um je ne sais quoi abjeto que tem que ser suprimido ou ignorado. A propriedade é possível - ou tão possível quanto qualquer coisa - mas a um custo."


Se você esteve lendo este blog por qualquer extensão de tempo, você consegue preencher muito do diálogo a partir daqui. Há algo extremamente elegante sobre a teoria de apropriação na ressalva de Locke. Mas a "propriedade" a que ela leva parece ser a "propriedade" de Stirner, que realmente está apenas de passagem, em vez da "propriedade privada" ou da "verdadeira ficção legal" de Proudhon de jus utendi et abutendi. Há uma teoria de algo como "direitos naturais" pertencente às "propriedades" em Proudhon, uma prima de primeiro grau da teoria das paixões de Fourier. Mas esses "direitos" realmente pertencem a forças, a faculdades, a "individualidades", "humanidades" e "esferas" em todas as escalas do ser. Essas são um monte de economias limitadas, entre as quais a economia da individualidade humana é uma que estamos fadados a privilegiar. Se você apurasse os votos do pessoal à beira do rio, é pouco provável, na verdade, que você encontrasse muita resistência a esse tipo de privilégio. Mas não seria surpreendente se, entre este mesmo pessoal, não houvesse um profundo interesse em "carregar seus próprios custos"? A posição a que Proudhon chegou inicialmente era de que a "posse" batia a "propriedade" porque ela não envolvia quaisquer ficções, não impunha quaisquer custos ocultos. A posição a que ele chegou bastante rapidamente depois disso era que a liberdade humana parecia exigir algo mais complicado e potencialmente "custoso".


Há um ponto de vista, alcançável a partir de uma série de abordagens socialistas tradicionais à propriedade e explicito no mutualismo de Proudhon, que poderia abraçar algum tipo de "propriedade privada", contanto que seus custos possam ser equalizados, eliminando a possibilidade dela funcionar como um privilégio reservado para alguns poucos. Proudhon via a liberdade como inseparável, de algumas maneiras básicas, de "tomar liberdades", reclamando uma separação precisamente absoluta a que seria necessário se opor se ela não fosse necessária ao progresso, se não fosse o caso de que "é o choque de ideias que ilumina". Mas mesmo Proudhon queria mais do que isso - e ele dificilmente era a única figura exigente em nosso grupo imaginário de teóricos da propriedade.


Em última análise, queremos ver em que medida podemos fazer esses personagens difíceis e exigentes conversarem uns com os outros e conosco, e quão longe podemos chegar com o modelo de propriedade que depende da equação X-G=X.

[continua...]