segunda-feira, 27 de abril de 2015

Kropotkin Não Era Nenhum Lunático

Kropotkin Não Era Nenhum Lunático
por Stephen Jay Gould
originalmente publicado pela Natural History 106, em Junho de 1997


No final de 1909, dois grandes homens trocaram correspondências através de oceanos, religiões, gerações e raças. Leo Tolstoy, sábio da não-violência Cristã em seus últimos anos, escreveu para o jovem Mohandas Gandhi, que lutava pelos direitos dos colonos indianos na África do Sul


Deus ajude nossos queridos irmãos e colegas de trabalho no Transvaal. A mesma luta do suave contra o severo, da brandura e do amor contra o orgulho e a violência, se faz cada vez mais presente a cada ano aqui entre nós também.


Um ano mais tarde, fatigado por conflitos domésticos, e incapaz de suportar a contradição da vida de pobreza Cristã em uma próspera propriedade, administrada com rendimento indesejável de seus grandes romances (escritos antes de sua conversão religiosa e publicados por sua mulher), Tolstoy fugiu de trem para partes desconhecidas e para um fim mais simples para seus últimos dias. Eles escreveu para sua mulher:


Minha partida vai lhe angustiar. Eu sinto muito por isso, mas entenda e acredite que eu não poderia fazer de outra forma. Minha posição na casa está se tornando, ou se tornou, insuportável. Para além de todo o resto, eu não posso mais viver nestas condições de luxo em que eu estive vivendo, e estou fazendo o que homens velhos da minha idade comumente fazem: deixando esta vida mundana a fim de viver os últimos dias da minha vida em paz e solidão.


Mas a jornada final da Tolstoy foi tanto curta quanto infeliz. Menos de um mês mais tarde, com frio e cansado de inúmeras longas viagens em trens russos com o inverno se aproximando, ele contraiu pneumonia e morreu aos oitenta e dois anos na casa do chefe da estação na parada de trem de Astapovo. Fraco demais para escrever, ele ditou sua última carta em 1º de Novembro de 1910. Endereçada a um filho e uma filha que não compartilhavam de suas visões sobre a não-violência Cristã, Tolstoy ofereceu uma última palavra de conselho:


As visões que vocês adquiriram sobre Darwinismo, evolução, e a luta pela existência não lhes explicarão o significado de suas vidas e não lhes darão orientação em suas ações, e uma vida sem uma explicação de seu significado e importância, e sem a orientação infalível que provém disso é uma existência lamentável. Pensem sobre isso. Eu digo isso, provavelmente às vésperas de minha morte, porque eu amo vocês.


A reclamação de Tolstoy têm sido a mais comum de todas as acusações contra Darwin, desde a publicação da Origem das Espécies em 1859 até agora. O Darwinismo, a acusação alega, mina a moralidade ao alegar que o sucesso na natureza só pode ser mensurado pela vitória em uma batalha sangrenta - a "luta pela existência" ou "a sobrevivência do mais apto" para citar a escolha de motes do próprio Darwin. Se desejamos que a "brandura e o amor" triunfem sobre o "orgulho e a violência" (como Tolstoy escreveu a Gandhi), então devemos repudiar a visão de Darwin da maneira da natureza - como Tolstoy afirmou em seu apelo final a seus errantes filhos.


Esta acusação contra Darwin é injusta por duas razões. Primeiro, a natureza (não importa quão cruel em termos humanos) não fornece qualquer base para nossos valores morais. (A evolução pode, no máximo, ajudar a explicar porque temos sentimentos morais, mas a natureza não pode nunca decidir por nos se qualquer ação em particular é certa ou errada.) Segundo, a "luta pela existência" de Darwin é uma metáfora abstrata, não uma declaração explícita sobre uma batalha sangrenta. O sucesso reprodutivo, o critério da seleção natural, opera em muitos modos: a vitória em batalha pode ser um caminho, mas a cooperação, a simbiose, e a ajuda mútua podem também assegurar sucesso em outros tempos e contextos. Em uma famosa passagem, Darwin explicou seu conceito de luta evolucionária (Origin of Species, 1859, pp 62-62):


Eu uso este termo e um sentido amplo e metafórico, incluindo a dependência de um ser sobre outro, e incluindo (o que é mais importante) não só a vida do indivíduo, mas o sucesso em deixar descendência. Dois animais caninos, em um tempo de escassez, podem realmente ser ditos lutar um com o outro por quem conseguirá comida e viver. Mas uma planta à margem de um deserto é dita lutar pela vida contra a seca... Como visco é disseminado por pássaros, sua existência depende de pássaros; e pode ser metaforicamente dito lutar com outras plantas frutíferas, a fim de tentar os pássaros a devorarem e, assim, disseminarem suas sementes, em vez daquelas de outras plantas. Nesses diversos sentidos, que passam de um para o outro, eu uso, por conveniencia, o termo geral luta pela existência.


Ainda assim, em outro sentido, a reclamação de Tolstoy não é inteiramente sem fundamento. Darwin realmente apresentou uma definição abrangente e metafórica de luta, mas seu exemplos reis certamente favoreciam a batalha sangrenta - "A Natureza, vermelha em dentes e garras"NT01, em um verso de Tennylson tão excessivamente citado que logo se tornou um clichê instintivo para sua visão da vida. Darwin embasou sua teoria da seleção natural na visão sombria de Malthus de que o crescimento da população deve ultrapassar a oferta de comida e levar a uma batalha evidente pelos minguantes recursos. Além disso, Darwin mantinha uma visão limitada mas controladora da ecologia como um mundo completamente cheio de espécies concorrentes - tão equilibrado e tão lotado que uma nova forma só poderia receber entrada ao literalmente expulsar um antigo habitante. Darwin expressava esta visão em uma metáfora ainda mais central à sua visão geral do que o conceito de luta - a metáfora da cunha. A natureza, Darwin escreve, é como uma superfície com 10.000 cunhas marteladas com força e preenchendo todo o espaço disponível. Uma nova espécie (representada como uma cunha) só pode conseguir entrada em uma comunidade se dirigindo a uma pequena fissura e forçando outra cunha para fora. O sucesso, nesta visão, só pode ser alcançado através da conquista direta em concorrência ostensiva.


Mais ainda, o principal discípulo do próprio Darwin, Thomas Henry Huxley, defendia esta visão "gladiatória" da seleção natural (palavra sua) em uma série de famosos ensaios sobre ética. Huxley mantinha que a predominância da batalha sangrenta definia a modo da naturaza como não-moral (não explicitamente imoral, mas certamente impróprio para oferecer qualquer guia para o comportamento moral).


Deste ponto de vista do moralista, o mundo animal está aproximadamente em um nível de um show de gladiadores. As criaturas razoavelmente bem tratadas, e colocadas para brigar - por meio do que o mais forte, o mais rápido, e o mais astuto vivem para lutar mais um dia. O espetador não tem qualquer necessidade de apontar seu polegar para baixo, já que nenhuma misericórdia é concedida.


Mas Huxley então vai além. Qualquer sociedade humana estabelecida nessa linha da natureza recairá em anarquia e miséria - o mundo brutal do bellum omnium contra omnes de Hobbes (onde bellum significa "guerra", não belo): a guerra de todos contra todos. Portanto, o propósito primário da sociedade deve estar na mitigação da luta que define o caminho da natureza. Estude a seleção natural e faça o oposto na sociedade humana:


Mas, na sociedade civilizada, o resultado inevitável de tal obediência [à lei da batalha sangrenta] é o re-estabelecimento, em toda sua intensidade, dessa luta pela existência - a guerra de cada um contra todos - a mitigação ou abolição da qual foi o principal fim da organização social.


Esta aparente discordância entre o modo da natureza e qualquer esperança de decência social humana definiu o maior assunto de debate sobre ética e evolução desde Darwin. A solução de Huxley ganhou muitos apoiadores - a natureza é sórdida e não é qualquer guia para a moralidade exceto, talvez, como um indicador do que evitar na sociedade humana. Minha própria preferência está em uma solução diferente, embasada em levar a visão metafórica de Darwin da luta a sério (admitidamente em face à própria preferência de Darwin por exemplos gladiatórios) - a natureza às vezes é sórdida, às vezes é agradável (na verdade nenhum dos dois, uma vez que os termos humanos são tão inapropriados). Ao apresentar exemplos de todos os comportamentos (sob a rubrica metafórica da luta), a natureza não favorece nenhum e não oferece quaisquer diretrizes. Os fatos da natureza não podem fornecer orientação moral em nenhum caso.


Mas uma terceira solução foi defendida por alguns pensadores que realmente desejam encontrar uma base para a moralidade na natureza e na evolução. Uma vez que poucos podem detectar muito conforto moral na interpretação gladiatória, esta terceira posição deve reformular o modo da natureza. As palavras de Darwin sobre o caráter metafórico da luta oferecem um ponto de partida promissor. Poder-se-ia argumentar que os exemplos gladiatórios tenho sido exagerados e mal-representados como predominantes. Talvez a cooperação e a ajuda mútua sejam os resultados mais comuns da luta pela existência. Talvez a comunhão, em vez do combate, leve ao maior sucesso reprodutivo na maioria das circunstâncias.


A expressão mais famosa desta terceira solução pode ser encontrada em Mutual Aid, publicado em 1902 pelo anarquista revolucionário russo Piotr Kropotkin. (Devemos deixar de lado o velho esterótipo de anarquistas como lançadores de bombas barbudos furtivamente espreitando pelas ruas da cidade à noite. Kropotkin era um homem genial, quase santo de acordo com alguns, que promoveu uma visão de pequenas comunidades estabelecendo seus próprios padrões através de consenso pelo benefício de todos, eliminando assim a necessidade da maioria das funções de um governo central.) Kropotkin, um nobre russo, vivia no exílio inglês por razões políticas. Ele escreveu Mutual Aid (em inglês) como uma resposta direta ao ensaio de Huxley citado acima, "The Struggle for Existence in Human Society", publicado na The Nineteenth Century, em Fevereiro de 1888. Kropotkin respondeu a Huxley com uma série de artigos, também impressos na The Nineteenth Century e eventualmente os reuniu como o livro Mutual Aid.


Como o título sugereNT02, Kropotkin argumenta, em sua premissa cardinal, que a luta pela existência usualmente leva à ajuda mútua em vez de ao combate como critério principal de sucesso evolutivo. A sociedade humana deve, portanto, expandir nossas inclinações naturais (não revertê-las, como mantinha Huxley) ao formular uma ordem moral que trará tanto paz quanto prosperidade para nossa espécie. Em uma série da capítulos, Kropotkin tenta ilustrar a continuidade entre a seleção natural da ajuda mútua entre animais e a base para o sucesso na organização social humana cada vez mais progressista. Seus cinco capítulos sequenciais abordam a ajuda mútua entre animais, entre selvagens, entre bárbaros, na cidade medieval, e entre nós mesmos.


Confesso que sempre vi Kropotkin como loucamente idiossincrático, embora inegavelmente bem intencionado. Ele sempre é assim apresentado em cursos padrão sobre biologia evolutiva - como um desses pensadores macios e peludos que deixam a esperança e o sentimentalismo ficarem no caminho da tenacidade analítica e de uma vontade de aceitar a natureza como ela é, com defeitos e tudo. Afinal, ela era um homem de política estranha e ideais impraticáveis, arrancado do contexto de sua juventude, um estranho numa terra estranha. Além disso, sua representação de Darwin correspondia tanto a seus ideais sociais (a ajuda mútua naturalmente dada como um produto da evolução sem necessidade de autoridade central) que só se poderia ver esperança pessoal, em vez de acurácia científica, em suas descrições. Kropotkin tem estado por muito tempo em minha lista de tópicos potenciais para um ensaio (mesmo que apenas porque eu queria ler seu livro, e não meramente repetir a interpretação do livro-texto), mas eu nunca prossegui porque eu não pude encontrar qualquer contexto mais amplo  do que o homem em si mesmo. Intelectos excêntricos são interessantes como fofoca, talvez como psicologia, mas a verdadeira idiossincrasia fornece a pior base possível para a generalidade.


Mas esta situação mudou para mim de repente quando eu li um artigo muito bom na última edição da Isis (nosso principal periódico profissional na história da ciência) de Daniel P. Todes: "Darwin's Malthusian Metaphor and Russian Evolutionary Thought, 1859-1917"NT03. Eu aprendi que a paroquialidade tinha sido minha na minha ignorância do pensamento evolucionista russo, e não de Kropotkin em seu isolamento na Inglaterra. (Eu consigo ler russo, mas apenas penosamente, e com um dicionário - o que significa, para todos os propósitos práticos, que eu não consigo ler a língua). Eu sabia que Darwin tinha se tornado um herói da intelligentsia russa e tinha influenciado a vida acadêmica na Rússia talvez mais do que em qualquer outro país. Mas virtualmente nada deste trabalho russo jamais foi traduzido ou sequer discutido na literatura inglesa. As ideias desta escola nos eram desconhecidas; nós nem mesmo reconhecemos os nomes dos principais protagonistas. Eu conhecia Kropotkin porque ele tinha publicado em inglês e vivido na Inglaterra, mas eu nunca entendi que ele representava uma crítica padrão e bem-desenvolvida de Darwin, embasada em razões interessantes e tradições nacionais coerentes. O artigo de Todes não torna Kropotkin mais correto, mas sim coloca seus escritos em um contexto geral que exige nosso respeito e produz um esclarecimento substancial. Kropotkin era parte de uma corrente principal que fluía em uma direção pouco familiar, não um pequeno riacho isolado.


Esta escola russa de crítico Darwinistas, argumenta Todes, embasava suas principal premissa em uma firme rejeição da alegação de Malthus de que a competição, no modo gladiatório, deve dominar em um mundo cada vez mais lotado, em que a população, crescendo geometricamente, inevitavelmente ultrapassa uma oferta de comida que só pode aumentar aritmeticamente. Tolstoy, falando por um consenso de seus compatriotas, rotulou Malthus como uma "mediocridade maliciosa".


Todes encontra um conjunto diverso de razões por trás da hostilidade russa a Malthus. Objeções políticas ao caráter predatório da concorrência industrial ocidental surgiram dos dois extremos do espectro russo. Todes escreve:


Os radicais, que esperavam construir uma sociedade socialista, viam o Malthusianismo como uma corrente reacionária na economia política burguesa. Conservadores, que esperavam preservar as virtudes comunais da Rússia czarista, o viam como uma expressão do "tipo nacional britânico".


Mas Todes identifica uma razão bem mais interessante na experiência imediata da terra e da história natural da Rússia. Todos nós temos uma tendência a tecer teorias universais a partir de um domínio limitado de circunstâncias ao redor. Muitos geneticistas leem todo o mundo da evolução nos confins de um frasco de laboratório cheio de moscas da fruta. Minha própria crescente dubiedade em relação à adaptação universal surge, em grande parte, sem dúvida, porque eu estudo um caracol peculiar que varia tão ampla e caprichosamente através de ambientes aparentemente invariantes, em vez de um pássaro em volo ou alguma outra maravilha do design natural.


A Rússia é um país imenso, sub-povoada por qualquer medida do século XIX de seu potencial agrícola. A Rússia também é, na maior parte de sua área, uma terra árida, em que é mais provável que a competição oponha organismo contra ambiente (como na luta metafórica de Darwin de uma planta às margens do deserto), do que organismo contra organismo em uma batalha direta e sangrenta. Como qualquer russo poderia, com um forte sentimento por sua própria paisagem, ver o princípio de Malthus de superpopulação como um fundamento da teoria evolutiva? Todes escreve:


Era estranho à sua experiência porque, pura e simplesmente, a enorme massa terrestre da Rússia diminuía sua esparsa população. Para um russo ver uma população inexoravelmente crescente constringindo potenciais fontes de alimento e espaço exigia um grande salto de imaginação.


Se estes críticos russos podiam honestamente vincular seu ceticismo pessoal à visão de seu próprio quintal, eles também podiam reconhecer que os entusiasmos contrários de Darwin podiam registrar a paroquialidade de seus arredores diferentes, em vez de um conjunto de verdades necessariamente universais. Malthus é um profeta bem melhor em um país lotado e industrial que professa um ideal de competição aberta em mercados livres. Além disso, frequentemente se fez o ponto de que tanto Darwin quanto Alfred Russel Wallace desenvolveram independentemente a teoria da seleção natural após a experiência primária com a história natural nos trópicos. Ambos alegavam inspiração de Malthus, de novo independentemente; mas se a sorte favorece a mente preparada, então sua experiência tropical provavelmente pre-dispunha ambos os homens a ler Malthus com ressonância e aprovação. Nenhuma outra área na terra é tão lotada de espécies, e portanto tão repleta de competição de corpo contra corpo. Um inglês que tivesse aprendido as maneiras da natureza nos trópicos estava quase fadado a ver a evolução diferentemente de um russo criado com contos do deserto siberiano.


Por exemplo, N. I. Danilevsky, um especialista em pesca e dinâmica populacional, publicou uma crítica grande, em dois volumes, do Darwinismo em 1885. Ele identificava a luta pelo ganho pessoal como o credo de um "tipo nacional" distintamente britânico, em contraste com os antigos valores eslavos de coletivismo. Uma criança inglesa, ele escreve, "briga um a um, não em um grupo como nós russos gostamos de disputar". Danilevsky via a competição Darwiniana como "uma doutrina puramente inglesa" fundada em uma linha de pensamento britânico se estendendo de Hobbes, passando por Adam Smith, até Malthus. A seleção natural, ele escreveu, está enraizada na "guerra de todos contra todos, agora denominada a luta pela existência - a teoria de Hobbes de política; na competição - a teoria econômica de Adam Smith. ...Malthus aplicou o mesmíssimo princípio ao problema da população. ...Darwin estendeu tanto a teoria parcial de Malthus e a teoria geral dos economistas políticos ao mundo orgânico". (As citações são do artigo de Todes.)


Quando nos voltamos ao Mutual Aid de Kropotkin à luz das descobertas de Todes sobre o pensamento evolucionista russo, devemos reverter a visão tradicional e interpretar esta obra como crítica russa mainstream, não excentricidade pessoal. A lógica central do argumento de Kropotkin é simples, direta, e em grande parte convincente.


Kropotkin começa reconhecendo que a luta desempenha um papel central nas vidas dos organismos e também fornece o ímpeto principal para a evolução. Mas Kropotkin mantém que a luta não deve ser vista como um fenômeno unitário. Ela deve ser dividida em duas formas fundamentalmente diferentes com significados evolutivos contrários. Devemos reconhecer, primeiro de tudo, a luta de organismo contra organismo por recursos limitados - o tema que Malthus transmitiu a Darwin e que Huxley descreveu como gladiatório. Esta forma de luta direta realmente leva à competição por benefício pessoal.


Mas uma segunda forma de luta - o estilo que Darwin chamou de metafórica - opõe organismo contra a severidade dos ambientes físicos ao redor, não contra outros membros da mesma espécie. Organismos devem lutar para se manter quentes, para sobreviver aos perigos repentinos e imprevisíveis do fogo e da tempestade, para perseverar em meio a duros períodos de seca, neve, ou peste. Estas formas de luta entre organismo e ambiente são melhor empreendidas através da cooperação entre membros da mesma espécie - através da ajuda mútua. Se a luta pela existência opõe dois leões contra uma zebra, então testemunharemos uma batalha felina e uma carnificina equina. Mas se leões estão lutando conjuntamente contra a severidade do ambiente inanimado, então um relâmpago não removerá o inimigo comum - ao passo que a cooperação pode superar um perigo que está além do poder de qualquer indivíduo único de sobrepujar.


Kropotkin, portanto, criou uma dicotomia dentro da noção geral de luta - duas formas com importância oposta: (1) organismo contra organismo da mesma espécie por recursos limitados, levando à competição; e (2) organismo contra ambiente, levando a cooperação.


Nenhum naturalista duvidará de que a ideia de uma luta pela vida levada à cabo através da natureza orgânica é a maior generalização de nosso século. A vida é uma luta; e nessa luta o mais apto sobrevive. Mas as respostas às questões "por quais armas luta é primordialmente levada à cabo!" e "quem são os mais aptos na luta!" diferirão amplamente de acordo coma importância dada aos dois diferentes aspectos da luta: o direito, por comida e segurança entre indivíduos separados, e a luta que Darwin descreveu como "metafórica" - a luta, muito frequentemente coletiva, contra circunstâncias adversas.


Darwin reconhecia que ambas as formas existiam, mas sua lealdade a Malthus e sua visão de natureza abarrotada de espécies o levaram a enfatizar o aspecto competitivo. As divagações menos sofisticadas de Darwin então exaltaram a visão competitiva à quase exclusividade, e amontoaram um significado social e moral sobre ela também.


Eles vieram a conceber o mundo animal como um mundo de luta perpétua entre indivíduos esfomeados, sedentos do sangue um do outro. Eles fizeram a literatura moderna ressoar com o grito de guerra de ai dos derrotados, como se fosse a última palavra da biologia moderna. Eles alçaram a luta "impiedosa" por vantagens pessoais à altura de um princípio biológico ao qual o homem deve se submeter também, sob a ameaça de, de outra forma, sucumbir em um mundo baseado em extermínio mútuo.


Kropotkin não negava a forma competitiva de luta, mas ele argumentava que o estilo cooperativo tinha sido subestimado e deveria se equilibrar ou mesmo predominar sobre a competição ao se considerar a natureza como um todo.


Há uma quantidade imensa de guerra e extermínio ocorrendo entre várias espécies; há, ao mesmo tempo, tanto, ou talvez ainda mais, de apoio mútuo, ajuda mútua, e defesa mútua.... A sociabilidade é tanto uma lei da natureza quanto o embate mútuo.


Conforme Kropotkin passava por seus exemplos selecionados, e dava gás a suas próprias preferências, ele ficava cada vez mais convencido de que o estilo cooperativo, levando à ajuda mútua, não apenas predominava em geral, mas também caracterizava as criaturas mais avançados em qualquer grupo - formigas entre os insetos, mamíferos entre os vertebrados. A ajuda mútua, portanto, se torna um princípio mais importante que a competição e carnificina.


Se nós... perguntarmos à Natureza: "quem é o mais adaptado: aqueles que estão continuamente em guerra uns com os outros, ou aqueles que apoiam uns aos outros?" nós de uma só vez vemos que aqueles animais que adquirem hábitos de ajuda mútua são, sem dúvida, os mais adaptados. Eles tem mais chances de sobreviver, e eles atingem, em suas respectivas classes, o mais alto desenvolvimento de inteligência e organização corpórea.


Se perguntarmos por que Kropotkin favorecia a cooperação enquanto a maioria dos Darwinistas do século XIX defendia a competição como o resultado predominante da luta na natureza, duas grandes razões se destacam. A primeira parece menos interessante, como óbvia sob o ligeiramente cínico, mas completamente verdadeiro princípio de que verdadeiros crentes tendem a ler suas preferências sociais na natureza. Kropotkin, o anarquista que ansiava substituir as leis do governo central pelo consenso de comunidades locais, certamente esperava localizar uma preferência profunda por ajuda mútua na medula evolutiva mais íntima de nosso ser. Que a ajuda mútua impregne a natureza e a cooperação humana se torna uma simples instância da lei da vida.


Nem os poderes esmagadores do Estado centralizado, nem os ensinamentos de ódio mútuo e luta impiedosa que vieram, adornados com os atributos de ciência, de filósofos e sociólogos subservientes, poderiam extirpar o sentimento de solidariedade humana, profundamente alojado no entendimento e no coração dos homens, porque tinha sido nutrido por toda nossa evolução precedente.


Mas a segunda razão é mais esclarecedora, como uma bem-vinda contribuição empírica da própria experiência de Kropotkin como um naturalista e uma afirmação da intrigante tese de Todes de que o fluxo usual da ideologia para a interpretação da natureza pode, às vezes, ser revertido, e que a paisagem pode colorir a preferência social. Quando rapaz, muito antes de sua conversão para o radicalismo político, Kropotkin passou cinco anos na Sibéria (1862-1866) logo após Darwin ter publicado a Origem das Espécies. Ele foi como um oficial militar, mas sua comissão servia como uma cobertura conveniente para sua ânsia de estudar a geologia, a geografia, e a zoologia do vasto interior da Rússia. Lá, no polo oposto às experiências tropicais de Darwin, ele viveu no ambiente menos conducente à visão de Malthus. Ele observou um mundo esparsamente populado, varrido por catástrofes frequentes que ameaçavam as poucas espécies capazes de encontrar um lugar em tal frieza. Como um potencial discípulo de Darwin, ele procurou por competição, mas raramente encontrou qualquer. Em vez disso, ele continuamente observou os benefícios da ajuda mútua em lidar com uma severidade exterior que ameaçava todos igualmente e não poderia ser superada pelos análogos da guerra e do boxe.


Kropotkin, em suma, tinha uma razão pessoal e empírica para olhar com favor para a cooperação enquanto uma força natural. Ele escolheu este tema como o parágrafo de abertura de Mutual Aid:


Dois aspectos da vida animal mais me impressionaram durante as jornadas que fiz em minha juventude na Sibéria Oriental e na Manchúria Setentrional. Um deles foi a extrema severidade da luta pela existência que a maioria das espécies animais tem que manter contra uma Natureza inclemente; a enorme destruição da vida que periodicamente resulta de ações naturais; e a consequente escassez de vida sobre o vasto território que caiu sob minha observação. E o outro era que, mesmo naqueles poucos locais em que a vida animal fervilhava em abundância, eu não consegui encontrar - embora eu estivesse avidamente procurando por ela - aquela amarga luta pelos meios de existência entre animais pertencentes à mesma espécie, que era considerada pela maioria dos Darwinistas (embora não sempre pelo próprio Darwin) como a característica dominante da luta pela vida, e o principal fator de evolução.


O que podemos fazer do argumento de Kropotkin hoje, e daquele de toda a escola russa representada por ele? Eram eles apenas vítimas da esperança cultural e do conservadorismo intelectual? Eu acho que não. Na verdade, eu manteria que o argumento básico de Kropotkin está correto. A luta realmente ocorre em muitos modos, e alguns levam à cooperação entre membros de uma espécie como o melhor caminho para a vantagem para indivíduos. Se Kropotkin superestimou a ajuda mútua, a maioria dos Darwinistas na Europa Ocidental tinham exagerado a competição de forma igualmente forte. Se Kropotkin tirou uma esperança inapropriada pela reforma social de sua concepção de natureza, outros Darwinistas tinha errado de forma igualmente firme (e por motivos que a maioria de nós agora condenaria) ao justificar a conquista imperial, o racismo, e a opressão de trabalhadores industriais como o resultado severo da seleção natural no modo competitivo.


Eu criticaria Kropotkin apenas de duas maneiras - uma técnica, a outra geral. Ele realmente cometeu um erro conceitual comum ao falhar em reconhecer que a seleção natural é um argumento sobre vantagens para organismos individuais, como quer que possam lutar. O resultado da luta pela existência pode ser cooperação em vez de competição, mas a ajuda mútua deve beneficiar organismos individuais no mundo de explicação de Darwin. Kropotkin às vezes fala da ajuda mútua como selecionada pelo benefício de populações ou espécies inteiras  - um conceito estrangeiro à lógica Darwiniana clássica (em que organismos trabalham, embora inconscientemente, para seu próprio benefício em termos de genes passados a futuras gerações). Mas Kropotkin também (e frequentemente) reconhecia que a seleção pela ajuda mútua beneficiava diretamente cada indivíduo em sua própria luta por sucesso pessoal. Assim, se Kropotkin não compreendeu a implicação completa do argumento básico de Darwin, ele de fato incluiu a solução ortodoxa como sua justificativa primária para a ajuda mútua.


De forma mais geral, eu gosto de aplicar uma regra prática um tanto cínica ao julgar argumentos sobre a natureza que também têm  implicações sociais evidentes: Quando tais alegações imbuem a natureza exatamente com aquelas propriedades que nos fazem sentir bem ou alimentam nossos preconceitos, seja duplamente desconfiado. Eu sou especialmente cauteloso com argumentos de encontram gentileza, mutualidade, sinergia, harmonia - os próprios elementos que nos empenhamos enormemente, e tão frequentemente sem sucesso, a colocar em nossas próprias vidas - intrinsecamente na natureza. Eu não vejo qualquer evidência para a noosfera de Teilhard, para o estilo californiano de holismo de Capra, para a ressonância mórfica de Sheldrake. Gaia me parece uma metáfora, não um mecanismo. (Metáforas podem ser libertadoras e esclarecedoras, mas novas teorias científicas devem suprir novas afirmações sobre causalidade. Gaia, para mim, parece apenas reformular, em termos diferentes, as conclusões básicas há muito atingidas pelos argumentos classicamente reducionistas da teoria cíclica biogeoquímica.)


Não existem atalhos para entendimentos morais. A natureza não é intrinsecamente qualquer coisa que possa oferecer conforto ou consolo em termos humanos - mesmo que apenas porque nossa espécie seja tal retardatário insignificante em um mundo que não foi construído para nós. Tanto melhor. As respostas para dilemas morais não jazem lá fora, esperando serem descobertas. Elas residem, como o reino de Deus, dentro de nós - o lugar mais difícil e inacessível a qualquer descoberta ou consenso.


Notas


[NT01] "Nature, red in tooth and claw", no original.
[NT02] Traduzido o título seria "Ajuda Mútua".

[NT03] "A Metáfora Maltusiana de Darwin e o Pensamento Revolucionário Russo", em tradução livre

quinta-feira, 2 de abril de 2015

O Bolo está Podre

O Bolo está Podre: Heterossexismo, Privilégio do Casamento, e o Caso do Casamento Queer1




I. Adão e Estevão / Eva e Lilith deveriam ter permissão para casar?



Suponhamos que temos quatro pessoas jovens solteiras, algumas das quais estão desesperadamente apaixonadas uma pela outra: Adão, Eva, Estevão e Lilith. Como muitas pessoas jovens apaixonadas, elas querem se casar e ter uma família. Elas podem? Em nossa atual sociedade, isto depende muito exatamente de quais delas estamos falando. Por exemplo, Adão, Eva e Estevão não podem tods se casarem entre si; apenas casais têm permissão para casar. Similarmente, Eva não pode se casar com Adão e depois também se casar com Estevão, sem primeiro terminar o casamento com Adão; cada parte do casal casado só tem permissão para ser casada com a outra parte do casal. Uma das características mais controversas do cenário é que Adão não pode se casar com Estevão, e Eva não pode se casar com Lilith: em nossa atual sociedade apenas mulheres têm permissão para se casarem com homens, e vice-versa; apenas casais heterossexuais têm, atualmente, permissão para se casar. Para muits defensors progressistas dos direitos gays, a proibição do casamento homossexual é um dos sinais predominantes da homofobia, do heterossexismo e da discriminação institucionalizada contra pessoas queer de nossa sociedade, e a solução é estender a instituição do casamento para incluir casais do mesmo sexo. Conservadors retorquem que a instituição do casamento é tal que estendê-la causaria danos irreparáveis ao casamento e aos valores que ele expressa ou produz para nossa sociedade. Durante os últimos dez ou vinte anos, discussões acaloradas no mainstream sobre o casamento queer surgiram periodicamente de tempos em tempos, com estes dois entendimentos mais ou menos monopolizando a discussão. Tendo em consideração os argumentos para cada posição, no entanto, ambas as posições estão fundamentadas em argumentos vulgares e um entendimento deficiente do casamento e de sua relação com a sociedade. Uma reconsideração radical do casamente identificará o casamento heterossexual como uma forma ilegítima de privilégio heterossexista, com uma relação preocupante e persistente com a supremacia masculina. Uma vez que é a presença do casamento heterossexual, e não a ausência do casamento homossexual, que é ilegítima, a sociedade deve ser radicalmente reconstruída de tal forma que as funções legítimas do casamento sejam tomadas por instituições outras e legítima, e as funções ilegítimas sejam relegadas ao monte de sucatas da história.


II. Os benefícios do casamento



O casamento é uma instituição que confere benefícios. Isto é razoavelmente incontroverso, e deveria ser bastante facilmente justificado se disputado: se o casamento fosse tão ruim assim, é pouco provável que a maioria das pessoas em nossa sociedade pudessem ser iludidas a realizá-lo.2 Então digamos que Adão e Eva se casassem. O que isso lhes garante? E o que é negado a Adão e Estevão pelo fato de que eles não podem se casar?
O casamento carrega benefícios legais.3 Adão e Eva têm direitos conjuntos à propriedade adquirida durante o casamento, significando que cada uma tem acesso protegido a apoio financeiro e material por parte da outra. Els tem o direito a tomar medidas legais em nome da outra onde a outra não puder fazê-lo por si mesma (como em processos por morte injusta, consentimento para procedimentos médicos quando a parceira está incapacitada, consentimento para exames post-mortem, etc.) As conversas privadas de Adão e Eva tem confidencialidade privilegiada quando uma é convocada como testemunha em um caso judicial. Adão e Eva são reconhecids como uma unidade única com relação à lei de imigração (isto é, a INSNT01 não "rompe famílias"): se Eva é uma cidadã do país, e Adão nasceu no Canadá, é concedido o status de residente nos E.U.A. a Adão, em virtude dele ser casado com Eva. Virtualmente todos os programas governamentais que lidam com benefícios (Seguridade Social, Medicare, benefícios de veteranos, ajuda em caso de desastres naturais, etc.) concedem status especial para o cônjuge da recipiente, que pode lhe dar direito a benefícios adicionais. Cônjuges são designads como membros da família um do outro, concedendo-lhes uma série de direitos com relação a herança, notificação, visita em instituições públicas, licença familiar garantida para cuidado das crianças e assim por diante. Adão e Eva também gozam de status tributário especial, que lhes dá direito a uma série de deduções, créditos e isenções. Finalmente, a existência de um casamento é uma consideração importante em questões de custódia de crianças e direitos de visita; um cônjuge pode mesmo ganhar visitação a uma criança enteada com a qual ele não tem qualquer relação de sangue porque ele já esteve em uma relação marital com um progenitor.
O casamento também confere benefícios sociais. A relação de Eva e Adão é reconhecida e celebrada como legítima; em particular, sua expressão sexual um com o outro é considerada, digamos, relações conjugais, em vez de fornicação e/ou adultério. Quaisquer crianças que els tenham durante o casamento serão consideradas legítimas em vez de ilegítimas ou bastardas. Estes benefícios sociais vão além de questões de palavras legais versus palavras sórdidas ou sorrisos versos escárnio: Eva e Adão conseguem acesso especial aos planos de saúde um do outro, conseguem direitos de visita em instituições privadas, e muitos outros benefícios materiais de empresas privadas, fundações, relações informais, e assim por diante.
Uma vez que o casamento carrega consigo uma série de benefícios, é uma questão crucialmente importante quem pode receber estes benefícios. Aquels em favor do casamento queer argumentam que não há qualquer boa razão pela qual devesse se negar a Adão e Estevão ou a Lilith e Eva estes bens; aquels que se opõem dizem que estender estes benefícios do casamento para seus relacionamentos queer de alguma forma violaria ou perverteria a natureza básica do casamento.

III. O Argumento Libertário



O pontapé inicial no debate frequentemente é um argumento por parte de progressistas que é melhor caracterizado como o Argumento Libertário. Se duas das quatro jovens pessoas querem se casar, é um acordo que elas fazem entre si mesmas. Parece que, se Adão e Estevão querem fazer este arranjo privado, não há qualquer razão particular pela qual o governo deveria fazer qualquer barulho a mais do que quando Adão e Eva decidem fazer o arranjo. Assim como o governo não tem qualquer direito claro de se intrometer em quem eu mantenho como amigs, ou onde eu compro meus hambúrgueres, ele também não tem qualquer direito claro de se intrometer em com quem eu me caso ou não. Em todo caso, como Andrew Coyne (cit. em Johnson [1999]) coloca, "o ônus está com o estado. Se nenhum... interesse social pode ser mostrado, se a sanção é embasada apenas no costume ou na convenção, então não está claro o que a lei tem a ver com isso". Além disso, a progressista defendendo o Argumento Libertário mantém, meramente apontar para os gêneros ds parceirs não é bom o suficiente: fazer uma distinção apenas com essa base equivale a nada mais do que discriminação sexual crua e homofobia. Assim, a progressista coloca o ônus sobre os ombros de seu oponente; como eu escrevi (1999), "a pergunta melhor é por que deveríamos reservar os privilégios do casamento a heterossexuais. E, se não pudermos encontrar uma boa objeção à extensão destes direitos, então talvez a questão deva ser considerada encerrada".


IV. O casamento é uma instituição privada?



Mas a descrição da progressista de casamento como um arranjo puramente privado é inadequada. Na atual situação, o casamento certamente não é meramente um arranjo privado entre as duas pessoas se casando. Em particular, deve-se conseguir a concessão de uma licença de casamento por parte do governo, e deve-se encontrar uma terceira parte com o poder de pronunciar o casal casado (tal como um padre ou um juiz de paz). Além disso, muitos estados têm uma provisão para a "união estável", em que um casamento pode ser declarado por decreto governamental, sem que ambos os recém-declarados cônjuges tenham concordado mutuamente com um arranjo conjugal. Mais ainda, existe uma série de benefícios conferidos no casamento que não podem ser conferidos por qualquer arranjo puramente privado. Por exemplo, não existe tal coisa como um contrato privado para dar uma à outra benefícios tributários (caso contrário todo mundo rapidamente assinaria contratos dando umas às outras uma restituição de 100% do imposto!).
Na atual conjuntura, então, o casamento não pode ser descrito como uma instituição puramente privada. No entanto, a maioria das pessoas reconheceria que não é uma categoria puramente legal tampouco. Se, por exemplo, o governo aprovasse uma lei amanhã dizendo que todos os benefícios legais do casamento seriam conferidos a todo grupo de duas pessoas cujos sobrenomes começassem com a mesma letra, então muito provavelmente não estaríamos inclinads a dizer que estas pessoas estão realmente casadas, muito embora elas tenham todos os direitos legais de casais casados. Pode ser melhor dizer, então, que o casamento ocupa um limite entre os domínios puramente público e o puramente privado: ele é uma instituição semi-pública ou público-privada.
Desta forma, a abordagem laissez-faire pura que a progressista inicialmente promoveu tem que ser repensada. Uma vez que o casamento não é uma instituição puramente privada, não podemos simplesmente depender desta alegação a fim de justificar o casamento queer. Mais terá que ser dito antes do caso ser encerrado.


V. O Argumento Neo-Libertário



Uma possível resposta a esta acusação é manter-se firme no princípio libertário e argumentar que, embora o casamento seja público-privado na atual conjuntura, ele deveria ser um arranjo puramente privado. O fato de que o governo por acaso se intromete, por exemplo, no sexo homossexual, não significa que casais homossexuais deveriam ser proibidos de ter relações sexuais; deveria ser uma questão puramente privada contanto que fossem adults consentidors. Desta forma, as características públicas (tais como o status governamental tributário e de benefícios, a imposição do status de união estável a casais que não tenham ambs concordado com ela, a exigência de uma licença especial, e assim por diante) deveriam ser eliminadas. As características privadas (tais como direitos de visita, status de herança, propriedade conjunta, e assim por diante) podem ser designadas sob um contrato privado de casamento, aceito através da cerimônia de casamento.
No entanto, a posição neo-libertária sofre de uma confusão fatal entre instituições que são acidentalmente público-privadas, e instituições que são essencialmente público-privadas. Por exemplo: muitos estados exigem uma licença de pesca antes que você possa legalmente sair e pescar em águas públicas. No entanto, o envolvimento do Estado na pesca não é essencial para o ato da pesca em si mesmo: se você saísse e pescasse sem uma licença, você estaria pescando ilegalmente, mas você ainda estaria pescando. Mas isto não pode ocorrer com o casamento: se Lilith e Eva concordam em se casar uma com a outra, mas o Estado se recusa a conceder-lhes o status conjugal, então não diríamos que elas "se casaram ilegalmente", mas sim que elas sequer tiveram permissão para se casar. Se o casamento pudesse ser uma instituição puramente privada, então onde quer que houvesse acordo mútuo de se casar deveria haver um casamento. Assim não haveria qualquer discussão que fosse sobre o casamento queer, mas antes uma discussão sobre se o governo deveria conceder ou não benefícios àqueles casais queer casados.
Remover o aspecto público de um relacionamento conjugal público-privado seria remover o casamento do relacionamento. Qualquer argumento a favor do casamento queer deve atingir sua meta sem tornar o casamento um contrato privado entre duas partes.


VI. O Argumento Progressista-Reformista



A progressista pode responder com uma visão modificada que concede o status público-privado do casamento, mas argumenta que as atuais restrições ao acesso aos benefícios do casamento são ilegítimas e que a instituição deveria ser reformada estendendo-se ela a casais queer. De fato, muits progressistas frequentemente apresentam esta visão mais ou menos ao mesmo tempo em que promovem um argumento civil libertário, sem reconhecer que são dois argumentos diferentes e precisam ser separados um do outro.
Ao contrário do Argumento Neo-Libertário, o Argumento Progressista-Reformista aceita o casamento como uma instituição público-privada, mas argumenta que existem razões perfeitamente boas para preservar e estender os benefícios do casamento a casais queer.
Muits progressistas-reformistas promovem o argumento de que "Para gays que podem ter sido viciosamente rejeitads pela famílias e amigs por causa de sua orientação sexual, ter um parentesco legal e socialmente legítimo teria benefícios psicológicos que não podem ser ignorados" (Johnson [1999])4. Mas isto não é tanto um argumento em favor do casamento queer quanto é um argumento contra a homofobia cruel. Pessoas queer deveriam ser capazes de esperar que suas familías e amigs não as "rejeitassem viciosamente" em primeiro lugar, e deveriam ter as mesmas redes de apoio disponíveis para elas caso fossem rejeitadas que as pessoas hétero solteiras têm, sem ter que acabar se casando a fim de lidar com o trauma.
De forma semelhante, progressistas-reformistas promovem a alegação de que apenas legalizando-se o casamento queer nossa sociedade pode reconhecer os relacionamentos queer como relacionamentos legítimos e saudáveis. Mas, de novo, isto é um argumento contra o heterossexismo, não a favor do casamento queer. Certamente reconhecemos muitos relacionamentos hétero em que não há casamento, e talvez haja mesmo uma intenção consciente de não se casar, como legítimos e saudáveis. O que realmente precisa ser feito, então, é reavaliar nossas atitudes em relação a relacionamentos queer de uma maneira similar.


Finalmente, numa veia de acesso igualitário, pode-se novamente perguntar que papel o governo tem em institucionalizar a homofobia no acesso ao casamento; certamente parece que ele precisa apresentar algumas boas razões pelas quais Eva e Adão podem se casar, mas não Eva e Lilith. Na ausência de algum argumento convincente sobre a diferença entre seus relacionamentos, parece que há uma razão bastante boa para ir em frente e deixar ambos terem acesso ao casamento. Ao passo que esta posição de acesso igualitário tem uma lógica interna convincente, há uma questão importante que ela simplesmente deixa sem resposta: qual é a natureza e o propósito do casamento em primeiro lugar? Por que o governo fornece benefícios para quaisquer casais casados? Se isto for deixado sem resposta, a Reformista-Progressista não tem qualquer resposta real para a questão de por que isto deveria também ser estendido para casais homossexuais.


VII. A Visão Conservadora



A visão conservadora intervem neste ponto, e tenta defender a tese de que os privilégios do casamento são concedidos porque o governo tem um interesse convincente em apoiar algum tipo particular de ordem social, que casais queer não podem cumprir, e, desta forma, ele deveria estender estes benefícios para casais heterossexuais. Assim como o governo reconhece apenas certos tipos de corporações para um status tributário de organização sem fins lucrativos, ele reconhece apenas certos tipos de casais para o casamento porque apenas eles comprem o propósito social do casamento.
A questão, então, é que meta os casais homossexuais falham em atingir. Claramente não pode ser alguns dos tradicionais esteios do casamento tais como amor, sexo, ou a criação de filhes - dispensando as tendenciosas especulações psiquiátricas que alguns conservadors promovem, parece bem claro que Eva e Lilith podem estar loucamente apaixonadas uma pela outra, e ninguém negaria que elas são fisicamente capazes de ter relações sexuais e de fornecer as necessidades das crianças a seus cuidados. Conservadors geralmente defendem diversos entre uma bateria de argumentos quanto a por quê.
Um primeiro argumento comum é algum tipo de variação do argumento religioso. Tradicionalistas linha-dura têm argumentado que o sacramento religioso do casamento é um alicerce da sociedade moral, e que a religião em particular, ou conjunto de religiões, que els têm em mente limita o sacramento um homem e uma mulher. Mas como Elliston (1984) argumenta, "por que todos de uma sociedade deveriam estar limitados pelos ensinamentos especiais de um secto religioso? ...Nenhum secto tem o direito moral de usar a lei para impôr suas crenças sobre outros" (181). Um governo secular simplesmente não tem qualquer papel em tomar uma posição neste tipo de questão.
Outrs conservadors, desejando ficar longe de questões de Igreja-Estado, oferecem um argumento da procriação. Como James Q. Wilson (cit. em Johnson [1999]) coloca, "o que é distintivo sobre o casamento é que ele é uma instituição criada para manter a criação de filhos", e que uma vez que "Nem um casal gay nem um lésbico pode, com seu próprios recursos, produzir uma criança", seria uma perversão do casamento estendê-lo a parceirs do mesmo sexo. Mas isto é claramente um argumento que demonstra ao mesmo tempo muito e muito pouco. Embora Adão e Estevão não possam (com a atual tecnologia) ter uma criança juntos, eles certamente podem participar da criação de filhes: ou Adão, ou Estevão, ou ambos, podem ter filhes através de relacionamentos heterossexuais anteriores, de adoção, do consentimento de uma mãe de aluguel, ou da tecnologia reprodutiva moderna. Por outro lado, se tomarmos o argumento de Wilson por seu valor de face, e seguirmos ele até seu fim lógico, ele também excluiria casamentos entre casais heterossexuais que não têm filhes por escolha, ou que não podem mais ter ou criar filhes devido a idade avançada. De fato, pareceria que a posição de Wilson obrigaria que casais pós-menopausa fossem forçados a ou adotar algumas crianças a mais, ou então se divorciarem, uma vez que, de outra forma, eles não teriam mais filhes.
Finalmente, a conservadora pode recorrer a um argumento da tradição e argumentar que o casamento simplesmente sempre foi definido em termos de casais heterossexuais, e se começarmos a brincar com essa concepção de casamento testada pelo tempo, podem haver consequências horrendas. De fato, els argumentam, a atual "crise do casamento" e as taxas crescentes de divórcio são um resultado direto da aceitação crescente de padrões afrouxados em relação a relacionamentos sexuais além da monogamia heterossexual legalmente ordenada, e que isto tem consequências terríveis, variando desde doenças venéreas e gravidez fora do casamento a taxas maiores de assassinatos e pobreza nos centros urbanos. A consideração completa do argumento da tradição exigirá um entendimento do conceito de casamento, a história do casamento, e o relacionamento entra as duas.


VIII. O conceito de casamento



Todos os argumentos até agora afundaram-se em entendimentos inadequados do conceito que a palavra 'casamento' designa. Exatamente o que é o casamento é raramente enunciado, porque a instituição é comum o suficiente para que nenhuma análise conceitual seja tomada como necessária.
Lyla O’Driscoll (1977) identifica corretamente duas características essenciais do casamento quando ela argumenta que "A diferença entre uma sociedade com casamento e uma sem ele é que, na primeira, as regras constituintes de uma instituição social existente distinguem entre progenitura ilegítima e legítima e caracterizam instâncias reais ou possíveis de congresso sexual enquanto relações conjugais" (132). Por mais importante que possam ser essas características, no entanto, elas não fornecem um entendimento conceitual adequado de casamento, porque são circulares. Distinguir entre progenitura legítima e ilegítima, e relações conjugais em contraste com adultério ou fornicação, é justamente distinguir entre crianças e sexo que ocorrem dentro de um relacionamento conjugal e aqueles que não o fazem. Mas O'Driscoll não forneceu uma explicação para o que constitui entrar nesse relacionamento. É provável que O’Driscoll falhe em fazer isso porque ela mantém que "o que mais quer que seja, o casamento é uma instituição social" (132), focando no aspecto público dele. Verdade, o casamento tem aspectos de uma instituição social pública. E é também verdadeiro que entre seus aspectos sociais mais importantes está que ele distingue entre progenitura legítima e ilegítima, entre sexo conjugal e não conjugal. Mas além do que o casamento regula, devemos também ver como as relações conjugais vêm a existir em primeiro lugar.
Já vimos que o casamento é essencialmente uma instituição limítrofe público-privada. Portanto, tanto o reconhecimento da comunidade quanto a participação individual são elementos essenciais. Um aspecto importante disto é que o reconhecimento da comunidade deve envolver privilegiamento social, econômico e legal por parte da comunidade e de seu órgão governante. Mais ainda, o reconhecimento da comunidade é embasado no status especial do agregado familiar ou da família nuclear. A lei de imigração concede residência a cônjuges porque a unidade de imigração é a família nuclear. Casais casados podem apresentar declarações fiscais conjuntas porque a unidade da avaliação fiscal é a família nuclear. Benefícios de seguro são concedidos a cônjuges porque planos de seguro asseguram famílias e não indivíduos. A herança tem por padrão um cônjuge porque a herança corre através de linhas de família, com o primeiro padrão sendo a família nuclear (cônjuge e filhes). De fato, não estaria muito longe dizer que a unidade fundamental da sociedade civil em sociedades com casamento não é o indivíduo, mesmo. A unidade fundamental da cidadania é o agregado familiar ou a família nuclear. As crianças são, na sociedade, 'cobertas' pelo agregado familiar de seus pais; adults não casads formam seus próprios agregados familiares de uma única pessoa (ou mais, se tiverem filhes).
Podemos então ter uma noção do conceito de casamento adequadamente (embora isto não se pretenda como uma definição final): o casamento é um processo através do qual duas pessoas realocam seu status de cidadania dentro de uma sociedade de agregados familiares5, ao serem reconhecidas como unidas em um único agregado familiar, por um período indefinido de tempo, santificando um relacionamento sexual e a criação de filhos pelo casal, e através da qual esse agregado familiar recebe privilégios legais, societais e/ou econômicos sobre os agregados familiares consistindo de indivíduos solteiros.
Eu intencionalmente menosprezei certas questões aqui. Em particular, não há qualquer palavra sobre se arranjos polígamos (poliginia, poliandria, casamentos grupais) podem contar como casamento (o casamento é especificado como sempre entre casais, mas nada é dito sobre se casa membro do casal deve apenas ser casado ao outro membro e a mais ninguém). O casamento também foi intencionalmente definido de uma forma neutra de gênero. Embora alguns conservadors contestariam que 'casamento' também inerentemente inclui o conceito de uma união especificamente heterossexual, isto meramente define a questão de casamentos do mesmo sexo como inexistente por meio de um sofisma semântico, sem esclarecer quaisquer das questões éticas ou políticas reais: isso tornaria o debate casamento queer em um argumento, não de filosofia, mas de lexicografia. Responder que aquilo sobre o que estamos debatendo deveria ser chamado de 'casamento' ou de algum eufemismo como 'parceria doméstica' ou 'união civil' não nos diz se sobre o que estamos falando é justificado ou não. Como Elliston (1984) argumento, "Para manter a questão onde ela pertence - no território moral - uma definição neutra de monogamia deveria ser empregada que não fuja à questão da legitimidade do casamento homossexual viciando o dado semântico logo de cara" (150).
Se esta elaboração for aceita, então quaisquer que sejam as identidades ds parceirs, o casamento é entendido como um relacionamento de privilégio em vez de um relacionamento privado entre dois indivíduos, e a questão de se casais queer deveriam ter permissão para se casar fica em posição secundária a uma procupação maior. Especificamente, por que o privilégio do casamento sequer existe? Por que as sociedades deveriam sequer operar ao nível de agregados familiares privilegiados e desprivilegiados, em vez de ao nível de indivíduos iguais?


IX. Privilégio do Casamento, Histórico e Contemporâneo



Existem, é claro, razões históricas para a existência do privilégio do casamento. Na história de nossa própria sociedade, estas razões são particularmente feias. Historicamente, a única forma de 'agregado familiar' que tem permissão para se formar através do casamento é uma família nuclear monogâmica heterossexual. Desta forma, o privilégio do casamento é a subsidiamento social da monogamia heterossexual. Verifica-se que o que é heterossexista e homofóbico sobre o casamento não é, antes de mais nada, a proibição do privilégio do casamento gay; mas antes, a existência do privilégio do casamento hetero.
Além disso, uma coisa frequentemente perdida em comentadors moderns é quão radicalmente a instituição do casamento foi reformada nos tempos modernos, com relação à política sexual entre marido e mulher. Apenas um século e meio atrás, o casamento era pouco mais do que um relacionamento de propriedade privada em que o marido recebia o controle sobre a mulher de seu guardião masculino anterior, usualmente seu pai. Como Blackstone (cit. em Anthony [1902]) escreveu,
Através do casamento, o marido e a mulher são uma pessoa na lei; isto é, a existência legal da mulher é fundida naquela do marido. Ele é seu barão ou senhor, obrigado a supri-la com abrigo, comida, vestimenta e remédio, e tem direito a seus ganhos e ao uso e custódia de sua pessoa, que ele pode apreender onde quer que possa encontrar. ...Isto é em respeito aos termos do contrato de casamento e à enfermidade do sexo [feminino]. (7-8)
Sob a instituição do casamento do começo e meio do século XIX, mulheres casadas perdiam acesso ao controle de propriedade privada, a buscar ação através do sistema legal, e mesmo controle sobre seus próprios corpos. Sua identidade enquanto cidadãs era simplesmente anexada ao marido; como a Declaração de Sentimentos emitida pela convenção de Seneca Falls colocou (cit. em Anthony [1902] 2), "Ele a tornou, se casada, aos olhos da lei, civilmente morta". O privilégio do casamento, até não muito tempo atrás, era instituído como uma forma de supremacia masculina manifesta, equivalendo a pouco mais do que uma escravidão das esposas por parte dos maridos.6
Hoje, a situação melhorou radicalmente. Maridos e mulheres gozam de um status e de direitos civis mais ou menos iguais ante à lei, podem manter sua própria independência financeira, e podem mudar todas as cerimônias históricas significativas da supremacia masculina sobre a família (tais como o pai simbolicamente 'dando a mão da noiva' para seu marido, manter seu próprio sobrenome, etc.) Existe, por outro lado, ainda muito que é perturbador nas operações internas das famílias, tal como o poder adulto sobre as crianças, e as práticas culturais que continuam a privilegiar o marido como 'chefe de família' acima da mulher.


X. Adão e Eva deveriam ter permissão para se casar?



No entanto, existem preocupações mais profundas do que com as operações internas de uma família. Em todos os casos, o casamento remarca uma forma específica de privilégio para alguns tipos de agregados familiares sobre outros. Mesmo se todo agregado familiar casado fosse uma democracia participativa perfeita, o privilégios dos agregados casados sobre os não casados (e assim, de pelo menos uma das pessoas no agregado casado sobre a pessoa no agregado não casado) é uma instituição social questionável. Que direito o governo ou a comunidade tem de subsidiar uma forma particular de sexualidade? Atualmente, apenas a monogamia heterossexual é subsidiada, fazendo da instituição um grande ato de privilégio heterossexista; e se fosse estendida para incluir casais queer, ainda privilegiaria pessoas em relacionamentos sexuais de longo prazo sobre aquelas que não estão atualmente nestes relacionamentos.
Como qualquer privilégio societal, deve haver uma boa razão para tal privilégio, ou então ele deveria ser abolido. Dada a natureza supremacista masculina e heterossexista da tradição, o apelo conservador para a tradição não será suficiente se estivermos comprometids com uma sociedade livre de tais preconceitos (algumas das razões defendidas pera se institucionalizar esse preconceito, tais como argumentos de moralidade religiosa e da criação de filhes, já foram consideradas e rejeitadas acima). Similarmente, os argumentos progressistas-reformistas de acesso igualitário não mostrarão que o casamento queer é justificado (se o próprio privilégio do casamento é ilegítimo, então casais homossexuais e heterossexuais ainda deveriam ter acesso igualitário ao casamento: o = o).
Sem melhores justificativas do que foram promovidas, a demanda conservadora por privilégio exclusivo para casais monogâmicos heterossexuais é, de fato, homofóbica e heterossexista, mas o clamor progressista-reformista de "Deixe-nos comer o bolo de casamento!" é, para extrapolar uma metáfora, apenas cortar para os casais homossexuais uma fatia igual de um bolo podre.
Com efeito, a crítica progressista-reformista é ela própria frequentemente sutilmente heterossexista, pelo fato de que os argumentos frequentemente, num grau mais ou menos evidente, sugerem que o ideal mais alto ao qual pessoas queer podem aspirar é o ideal de ter um relacionamento exatamente igual ao mainstream hétero, exceto com uma configuração de gênero diferente no casal.7


XI. A Crítica Radical: Uma Sociedade Sem Casamento



A crítica radical do casamento analisa o privilégio do casamento como um privilégio social injustificado e argumenta que os males sociais em torno do casamento (incluindo o privilégio heterossexista de casais heterossexuais sobre casais homossexuais através do casamento) são melhor resolvidos não "reformando" e remendando o privilégio do casamento, mas indo à raíz do problema e abolindo o casamento, re-orientando a comunidade para um sociedade de indivíduos em vez de agregados familiares. Como um exemplo concreto deste tipo de análise, a crítica feminista radical Betsy Brown (2000) escreve que, em vez de lutar pelo casamento de mesmo sexo, defensors queer e feministas deveriam trabalhar pelos princípios de que:
  1. Tods deveriam ter um direito garantido a assistência médica. Um seguro de saúde universal tornaria o debate sobre benefícios para parceirs inteiramente desnecessário.
  2. Leis de imigração deveriam ser abolidas. Parceirs do mesmo sexo de cidadãos dos E.U.A. poderiam, então, entrar no país sem qualquer dificuldade. A perseguição de trabalhadors ilegais também acabaria.
  3. Leis que limitam o número de pessoas "sem parentesco" que vivem em um lar deveriam também ser abolidas.
  4. Deveríamos desenvolver o conceito de parente mais próximo designado (DNOK, na sigla em inglêsNT03). Isto seria como a parceria doméstica, mas mais inclusiva. Você poderia nomear qualquer número de pessoas como DNOKs - amigs assim como amantes. Você teria o direito a incluir - ou excluir - quaisquer de seus parentes biológicos. Seus DNOKs teriam direitos automáticos de lhe visitar no hospital, tomar decisões médicas para você caso você esteja incapacitade, assumir a custódia de suas crianças quando você morrer, e herdar de você em parcelas iguais. (Se você for realmente rico, um pouco do seu patrimônio deveria ser apropriado para financiar o item número um.)
  5. Finalmente, o casamento é melhor entendido como um sacramento religioso8. O governo não tem nada mais a ver com determinar quem casa do que ele tem com decidir quem é um membro em boas condições da igreja Batista. Sob o princípio da separação da igreja do estado, o governo não deveria reconhecer o casamento para ninguém de qualquer orientação sexual. Se você deseja o direito de casar, isso deveria ser uma questão entre você, sua noiva, e os representantes devidamente mandatados de qualquer fé que você pratique. Se você não gostar de nenhuma das religiões disponíveis, sinta-se livre para começar sua própria, com ou sem um deus ou deusa. Por exemplo, você poderia começar a Igreja Universal do Matrimônio Queer.
Em cada caso, as funções do casamento que são legítimas (tais como a questão puramente privada de designar um parente mais próximo) poderiam ser tratadas através de meios alternativos. As funções ilegítimas (tais como status especial para impostos ou programas de benefícios) simplesmente serão eliminadas.
As mudanças solicitadas pela crítica radical envolveriam um reorientação verdadeiramente revolucionária da sociedade. Do ponto de vista legal apenas, ela exigirá uma inspeção fundamental do direito tributário, do direito social, da custódia de crianças, da herança e de inúmeras outras categorias.
Do ponto de vista social, por outro lado, muito poderia ficar da mesma forma. Bastante ironicamente, a maior parte do padrão cotidiano do que agora é a vida conjugal poderia permanecer no lugar enquanto o casamento fosse abolido. Ainda seria perfeitamente concebível, e mesmo bastante provável, que casais eróticos (incluindo casais heterossexuais monogâmicos) escolhessem viver juntos, compartilhar recursos econômicos, e compartilhar muito de seu tempo juntos. Muitos podem escolher criar filhes. Alguns podem escolher celebrar seus relacionamentos com cerimônias e festas em grandes eventos tais como irem morar juntos, que poderia muito bem ser muito parecido com os casamentos atuais. Tudo positivo e afirmativo da vida em relacionamentos românticos poderia existir bastante bem dentro de uma sociedade sem qualquer categoria especial de 'casamento'.
No entanto, assim como muito ficaria o mesmo, muito também sofreria um exame verdadeiramente radical. Com as categorias especiais de 'marido' e 'esposa' (assim como 'noiva' ou 'divorciada' e assim por diante) ausentes, assim também estaria a restrição sobre a sexualidade para relacionamentos que são casamentos ou "parecidos com casamento' (isto é, namorado/namorada). A sexualidade não mais seria mediada através das categorias público-privadas do namoro e do casamento, mas sim através de relacionamentos privados completamente individualizados, efetivamente uma classe especial de 'amizade erótica'. Haveriam casais heterossexuais monogâmicos ainda, com certeza, mas toda outra forma de sexualidade (assim como de assexualidade) mutualmente consentida e recompensadora seria igualmente legítima e válida, e nenhuma receberia privilégio especial e subsídio sobre as outras.
O trabalho de imaginar tal sociedade a partir de uma sociedade onde o privilégio do casamento é um dos princípios fundamentais da sociedade civil é extraordinariamente difícil. No entanto, se o privilégio do casamento for reconhecido como tal e não puder ser justificado, então é imperativo que comecemos a fazer este trabalho difícil e lento de re-imaginar e reconstruir novas maneiras de trabalhar, brincar, viver e amar juntos.
NOTAS
[1] Para explicar alguns termos centrais: Queer é aproximadamente sinônimo de Lésbica, Gay, Bissexual, Trans, ou Em Questionamento, mas sem qualquer conotação de que uma sexualidade queer é necessariamente um traço fixo de caráter ou algo com que você "nasceu". Homossexualidade e gay são usados por todo o texto para significar qualquer relacionamento romântico-sexual entre duas pessoas do mesmo gênero (seja masculino ou feminino), quer estas pessoas sejam exclusivamente homossexuais, bissexuais, ou qualquer outra variação concebível. Homofobia é uma atitude manifesta de hostilidade em relação a pessoas que têm relacionamentos homossexuais; heterossexismo é uma atitude que não necessariamente envolve hostilidade evidente, mas simplesmente ignora relacionamentos homossexuais e trata relacionamentos românticos de tal forma que apenas relacionamentos heterossexuais são vistos como "reais" ou legítimos.
[2] Isto é reconsiderado a seguir com respeito aos efeitos históricos do casamento sobre as mulheres, mas sua verdade essencial permanecerá incontestada.
[3] A lista de benefícios legais foi recolhida de Shepherd (2001).
[4] Extraído de um antigo artigo que escrevi defendendo a posição Progressista-Reformista em favor do casamento queer. Eu não mantenho mais as visões que defendi nesse artigo e considero os argumento que fiz como não apenas de má qualidade, mas também frequentemente heterossexistas, excessivamente disposto a naturalizar a agressão masculina, e carecendo de imaginação para rotas alternativas para os "benefícios" do casamento.
[5] Isto é oposto a uma sociedade de indivíduos, em que as instituições sociais aplicam benefícios, custos, e regras para indivíduos em vez de para agregados familiares de uma ou mais pessoas.
[6] É importante notar aqui que, muito embora apenas o pater familias recebesse qualquer "privilégio" em particular deste relacionamento, ele ainda satisfaz a elaboração anterior do conceito de 'casamento', uma vez que ela especificava que o agregado familiar recebia privilégio, mas não especificava se todos os membros individuais do agregado recebiam privilégios. O marido era explicitamente definido como 'chefe de família' pela lei e pelo costume, e portanto eram os seus interesses que definiam os interesses da unidade do 'agregado familiar' na sociedade.
[7] A retórica de autores tais como Andrew Sullivan, Jonathan Rauch, e antigamente, eu mesmo, frequentemente promove argumentos de que "permitir que gays se casem ajudaria a encorajar uma vida conjugal estável enquanto desencoraja o estilo de vida marginal extravagante e muitas vezes promíscuo de alguns dos ativistas homossexuais mais vocais" (Johnson [1999]). Esta retórica acaba muitas vezes como pouco mais do que a insistência de que o ideal para queers é simplesmente a assimilação incondicional ao mainstream heterossexual/heterossexista, se mudar para os subúrbios e se tornar Soccer Mom QueensNT02
[8] Em uma sociedade completamente livre de casamento, o aspecto de sacramento religioso do casamento também deixaria de existir, uma vez que isto é também um status de privilégio dentro de uma sub-comunidade. Mas Brown está apresentando direções políticas que, claro, serão implementadas para trazer a sociedade em direção a uma reconstrução radical sem casamento, em vez de uma sociedade em que isto já aconteceu.
[NT01] Agência de Imigração dos Estados Unidos
[NT02] Soccer Mom, de modo geral, refere-se a uma mulher de classe média suburbana norte-americana que passa uma quantidade significativa de seu tempo transportando seus filhos em idade escolar para eventos esportivos juvenis ou outras atividades. Vide: http://en.wikipedia.org/wiki/Soccer_mom
[NT03] designated next of kin.
Referências