segunda-feira, 10 de agosto de 2015

As Novas Anarquistas

As Novas Anarquistas

É difícil pensar em outra época em que tenha havido tamanho abismo entre intelectuais e ativistas; entre teóricas da revolução e suas praticantes. Autoras que por anos publicaram ensaios que soam como documentos de posicionamento de vastos movimentos sociais que não existem de fato parecem estar tomadas de confusão, ou pior, desprezo desdenhoso, agora que as verdadeiras estão emergindo em todo lugar. É particularmente escandaloso no caso do que ainda é, por nenhum boa razão em particular, conhecido como o movimento 'anti-globalização', um movimento que, em meros dois ou três anos, conseguiu transformar completamente o sentido das possibilidade históricas para milhões de pessoas em todo o planeta. Isto pode ser o resultado de pura ignorância ou de confiar no que se pode extrair de fontes tão manifestamente hostis como o New York Times; mas aí, a maior parte do que se escreve mesmo em canais progressistas parece grandemente errar o alvo - ou, pelo menos, raramente foca no que as participantes do movimento realmente pensam que é mais importante nele.

Como antropólogo e participante ativo - particularmente na ponta radical, de ação direta, do movimento - eu posso ser capaz de esclarecer alguns pontos comuns de mal-entendidos; mas as notícias podem não ser recebidas com gratidão. Muito da hesitação, suspeito eu, está na relutância em chegar a um acordo com o fato de que elas são, na verdade, liberais: interessadas em expandir as liberdade individuais e perseguir a justiça social, mas não de maneiras que desafiem seriamente a existência das instituições reinantes como o capital ou o estado. E mesmo muitas das que gostariam de ver uma mudança revolucionária poderiam não se sentir inteiramente felizes sobre ter que aceitar que a maior parte da energia criativa da política radical está vindo agora do anarquismo - uma tradição que elas, até então, repudiavam em sua maior parte - e que levar este movimento a sério será necessariamente também exprimir um envolvimento respeitoso com ele.

Estou escrevendo como um anarquista; mas em um sentido, contar quantas pessoas envolvidas no movimento realmente se denominam 'anarquistas' e em quais contextos vem pouco ao caso.1 A própria noção de ação direta, com sua rejeição de uma política que apela a governos para modificar seu comportamento, em favor da intervenção física contra o poder estatal de uma forma que, em si mesma, prefigura um alternativa - tudo isso emerge diretamente de uma tradição libertária. O anarquismo é o coração do movimento, sua alma; a fonte da maior parte do que é novo e esperançoso quanto a ele. No que se segue, então, eu tentarei esclarecer o que parecem ser os três maiores equívocos quanto ao movimento - nossa suposta oposição a algo chamado 'globalização', nossa suposta 'violência', e nossa suposta carência de uma ideologia coerente - e então sugerir como intelectuais radicais poderiam pensar sobre reimaginar sua própria prática teórica à luz de tudo isso.

Um movimento de globalização?


A frase 'movimento anti-globalização' é uma fabricação da mídia dos EUA e as ativistas nunca se sentiram confortáveis como ela. Até onde este é um movimento contra qualquer coisa, é contra o neoliberalismo, que pode ser definido como um tipo de fundamentalismo de mercado - ou, melhor de Stalinismo de mercado - que defende que há apenas uma possível direção para o desenvolvimento histórico humano. O mapa é detido por uma elite de economistas e propagandistas corporativos, a quem se deve ceder todo o poder já detido por instituição com qualquer pingo de responsabilização democrática; de agora em diante ele será exercido grandemente através de organizações de tratado não eleitas como o FMI, a OMC ou a NAFTA. Na Argentina, na Estônia ou em Taiwan seria possível dizer isso diretamente: 'Somos um movimento contra o neoliberalismo'. Mas nos EUA, a língua é sempre um problema. A mídia corporativa aqui é provavelmente a mais politicamente monolítica do planeta: o neoliberalismo é tudo que há para se ver - a realidade de fundo; como resultado, a palavra em si mesma não pode ser usada. As questões envolvidas só podem ser abordadas usando-se termos da propaganda como 'livre comércio' ou 'o livre mercado'. Assim, ativistas americanas se encontram em um dilema: se alguém sugere colocar 'a palavra com N' (como é frequentemente chamada) em uma panfleto ou comunicado à imprensa, os sinos de alarme já disparam: você está sendo excludente, falando apenas para uma elite educada. Houve todo tipo de tentativa de se enquadrar expressões alternativas - somos um 'movimento global por justiça', somos um movimento 'contra a globalização corporativa'. Nenhum é especialmente elegante ou bastante satisfatório e, como resultado, é comum nas reuniões ouvir as pessoas usando 'movimento de globalização' e 'movimento anti-globalização' de forma praticamente intercambiável.

A frase 'movimento de globalização', no entanto, é de fato bastante pertinente. Se se assumir que globalização significa a obliteração das fronteiras e o livre movimento das pessoas, posses e ideias, então está bastante claro que não apenas o movimento em si é um produto da globalização, mas a maioria dos grupos envolvidos nele - os mais radicais em particular - são bem mais solidários à globalização em geral do o são o FMI ou a OMC. Foi uma rede internacional chamada Ação Global dos Povos, por exemplo, que estendeu a primeira convocação para dias de ação em escala planetária, tais como o J18 e o N30 - o último sendo o chamado original para os protestos contra os encontros da OMC em 1999 em Seattle. E a AGP, por sua vez, deve suas origens ao famoso Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, que ocorreu com a lama da selva da estação chuvosa de Chiapas até os joelhos, em Agosto de 1996; e foi ela mesma iniciada, como o Subcomandante Marcos coloca, 'por todas as rebeldes em todo o mundo'. Pessoas de mais de 50 países vieram num fluxo até a vila de La Realidad, mantida pelos Zapatistas. A visão de um 'rede intercontinental de resistência' foi estabelecida na Segunda Declaração de La Realidad: 'Declaramos que criaremos uma rede coletiva de todas as nossas lutas e resistências particulares, uma rede intercontinental de resistência contra o neoliberalismo, uma rede intercontinental de resistência pela humanidade':

Que haja uma rede de vozes que resistem à guerra que o Poder luta contra elas.

Uma rede de vozes que não apenas falam, mas também lutam e resistem pela humanidade e contra o neoliberalismo.

Uma rede que cobre os cinco continentes e ajuda a resistir à morte que o Poder nos promete.2

Esta, a Declaração deixou claro, não era 'uma estrutura organizada; ela não tem nenhuma cabeça central ou tomador de decisão, ela não tem nenhum comando central ou hierarquias. Somos a rede, todos nós que resistimos'.

No ano seguinte, partidárias Zapatistas europeias nos grupos Ya Basta! organizaram um segundo encuentro na Espanha, onde a ideia de processo de rede foi levada adiante: a AGP nascia em um encontro em Genebra em Fevereiro de 1998. Desde o princípio, ela incluía não apenas grupos anarquistas e sindicatos radicais da Espanha, Grã-Bretanha e Alemanha, mas uma liga de agricultoras socialistas Ghandianas na Índia (a KRRS), associações de povos pescadores indonésios e cingaleses, o sindicato argentino de professoras, grupos indígenas tais como os Maori da Nova Zelândia e os Kuna do Equador, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra brasileiro, uma rede feita de comunidades fundadas por escravas fugidas das Américas do Sul e Central - e um sem número de outros. Por muito tempo, a América do Norte esteve mal representada, salvo pelo Sindicato Candense de Trabalhadoras Postais - que agia como o principal hub de comunicação da AGP até que foi largamente substituído pela internet - e um grupo anarquista com base em Montreal chamado CLAC.

Se as origens do movimento são internacionalistas, também o são suas demandas. O programa de três plataformas do Ya Basta! na Itália, por exemplo, exige um 'renda básica' universalmente garantida, cidadania global, garantia do livre movimento de pessoas através das fronteiras e livre acesso a nova tecnologia - que, em prática, significaria limites extremos aos direitos de patentes (eles mesmo uma forma muito insidiosa de protecionismo). A rede sem fronteiras - seu slogan: 'Ninguém é Ilegal' - organizou acampamentos de uma semana, laboratórios de resistência criativa, nas fronteiras entre a Polônia e a Alemanha e da Ucrânia, na Sicília e em Tarifa na Espanha. Ativistas se vestiram como guardas de fronteira, construíram pontes de barco por sobre o Rio Oder e bloquearam o Aeroporto de Frankfurt com uma orquestra clássica completa para protestar contra a deportação de imigrantes (deportadas haviam morrido sufocadas em vôos da Lufthansa e da KLM). O acampamento deste verão está planejado para Strasbourg, lar do Sistema de Informação de Schengen, um banco de dados de busca-e-controle com dezenas de milhares de terminais por toda a Europa, tendo como alvos movimentos de migrantes, ativistas, qualquer um que desejem.

Cada vez mais as ativistas tem tentado chamar atenção para o fato de que a visão neoliberal de 'globalização' é basicamente limitada ao movimento de capital e mercadorias e, na realidade, aumenta as barreiras ao livre fluxo de pessoas, informações e ideias - o tamanho da guarda de fronteira dos EUA quase triplicou desde a assinatura do NAFTA. Pouco surpreendente: se não fosse possível efetivamente aprisionar a maioria das pessoas do mundo em enclaves empobrecidos, não haveria nenhum incentivo para a Nike ou a The Gap moverem sua produção para lá em primeiro lugar. Dado um livre movimento de pessoas, todo o projeto neoliberal colapsaria. Esta é outra coisa a se manter em mente quando as pessoas falam sobre o declínio da 'soberania' no mundo contemporâneo: a principal realização do estado-nação no último século foi o estabelecimento de uma grade uniforme de barreiras altamente policiadas por todo o mundo. É precisamente contra este sistemas internacional de controle que estamos lutando, em nome da genuína globalização.

Estas conexões - e os elos mais amplos entre políticas neoliberais e mecanismos de coerção estatal (polícia, prisões, militarismo)  - desempenharam um papel cada vez mais saliente em nossas análises conforme nós mesmas confrontamos níveis ascendentes de repressão estatal. As fronteiras se tornaram uma questão maior na Europa durante os encontros do FMI em Praga e, mais tarde, nas reuniões da UE em Nice. Na cúpula da ALCA na Cidade de Quebec, no último verão, linhas invisível que haviam anteriormente sido tratadas como se não existissem (pelo menos para pessoas brancas) foram convertidas, do dia para a noite, em fortificações contra o movimento das aspirantes a cidadãs globais que exigiam o direito a peticionar seus governantes. A 'muralha' de três quilômetros construída pelo centro da Cidade de Quebec para proteger os chefes de estado fazendo piquenique lá dentro de qualquer contato com a população se tornou o símbolo perfeito para o que o neoliberalismo realmente quer dizer em termos humanos. O espetáculo do Black Bloc, armado com cortadores de fios e arpéus, acompanhado por todo mundo, de metalúrgicas a guerreiros Mohawk, para derrubar a muralha, se tornou - por essa mesma razão - um dos momentos mais poderosos da história do movimento.3

Há um contraste impressionante entre este internacionalismo e os anteriores, no entanto. Os primeiros normalmente acabavam exportando modelos organizacionais ocidentais para o resto do mundo; neste, o fluxo foi, se qualquer coisa, o contrário. Muitas, talvez a maioria, das técnicas de assinatura do movimento - incluindo a própria desobediência civil em massa - foram primeiro desenvolvidas no Sul global. No longo prazo, esta pode bem se provar a coisa mais radical sobre ele.

Bilionárias e palhaças


Na mídia corporativa, a palavra 'violento' é invocada como um tipo de mantra - invariavelmente, repetidamente - quando quer que uma grande ação tenha lugar: 'protestos violentos', 'choque violentos', 'a polícia fez uma incursão à sede dos manifestantes violentos', e mesmo 'revoltas violentas' (existem outros tipos?). Tais expressões são tipicamente invocadas quando uma descrição simples, em Inglês claro, do que aconteceu (pessoas jogando bombas de tinta, quebrando janelas de vitrines vazias, segurando as mãos enquanto bloqueiam cruzamentos, policiais batendo nelas com cassetetes) podem dar a impressão que a única parte verdadeiramente violenta era a polícia. A mídia dos EUA é provavelmente a maior criminosa aqui - e isto a despeito do fato de que, após dois anos de ação direta cade vez mais militante, ainda é impossível apresentar um único exemplo de ninguém a quem uma ativista dos EUA tenha causado dano físico. Eu diria que o que realmente perturba os poderes constituídos não é a 'violência' do movimento, mas sua relativa carência dela; governos simplesmente não sabem como lidar com um movimento manifestamente revolucionário que se recusa a cair nos padrões familiares de resistência armada.

O esforço para destruir os paradigmas existentes é normalmente bastante auto-consciente. Onde já pareceu que as únicas alternativas a marchar com cartazes eram ou a desobediência civil não-violenta Ghandiana ou a insurreição total, grupos como a Direct Action Network, Reclaim the Streets, Black Blocs ou Tute Bianche têm todos, de suas próprias maneiras, tentado mapear um território completamente novo no meio. Eles estão tentando inventar o que muitas chamam de uma 'nova linguagem' da desobediência civil, combinando elementos de teatro de rua, festivais e o que só pode ser chamado de guerra não-violenta - não-violenta no sentido adotado por, digamos, anarquistas Black Bloc, de que se abstém de qualquer dano físico direto a seres humanos. O Ya Basta!, por exemplo, é famoso por sua tática tute bianche, ou macacões brancos: homens e mulheres vestidas com formas elaboradas de proteções, indo de couraças a tubos internos a dispositivos de flutuação de patinhos de borracha, capacetes e macacões brancos à prova de químicos (suas primas britânicas são as bem-vestidas WomblesNT01). Conforme esse exército de mentira força seu caminho através de barricadas da polícia, o tempo todo protegendo umas às outras contra ferimento ou prisão, os ridículos equipamentos parecem reduzir seres humanos a personagens de desenho - disformes, deselegantes, tolas, largamente indestrutíveis. O efeito apenas aumenta quando as fileiras de figuras fantasiadas atacam a polícia com balões e pistolas d'água ou, como o 'Pink Bloc' em Praga e outros lugares, se vestem como fadas e fazem cócegas nela com espanadores de pó.

Nas convenções dos partidos americanos, as Bilionárias a favor de Bush (ou Gore) se vestiram com smokings humorísticos e vestidos de noite e tentaram colocar maços de dinheiro falso nos bolsos dos policiais, lhes agradecendo por reprimir a dissidência. Nenhuma foi sequer ligeiramente ferida - talvez a polícia receba terapia de aversão a bater em alguém de smoking. O Bloc Revolucionário Anarquista de Palhaças, com suas bicicletas altas, perucas de arco-íris e marretas esganiçadas, confundiram os policiais atacando umas às outras (ou às bilionárias). Elas tinham os melhores gritos: 'Democracia? Ha Ha Ha!', 'A pizza unida jamais será vencida', 'Hey ho, hey ho - ha ha, hi hi!', assim como meta-gritos como 'Chamado! Resposta! Chamado! Resposta!' - e o favorito de todo mundo - 'Grito Três Palavras! Grito Três Palavras!'

Na Cidade de Quebec, uma catapulta gigante construída nas linha medievais (com ajuda da convenção de esquerda da Sociedade pelo Anacronismo Criativo) lançava brinquedos macios na ALCA. Técnicas ancestrais de guerra foram estudadas para serem adotadas em formas não-violentas mas muito militantes de confronto: havia peltastas e hoplitas (as primeiras principalmente das Ilhas Prince Edwards, as últimas de Montreal) na Cidade de Quebec, e a pesquisa continua com muralhas de escudos no estilo romano. Bloqueios se tornaram uma forma de arte: se você fizer uma teia enorme de pedaços de fio de um lado a outro de um cruzamento, é  realmente impossível de atravessar; policiais de moto ficam presos como moscas. O Boneco da Liberação com seus braços totalmente estendidos podem bloquear uma rodovia de quatro pistas, ao passo que danças da cobra podem ser uma forma de bloqueio móvel. Rebeldes em Londres no último Primeiro de Maio planejaram ações de Banco Imobiliário - Construir Hotéis na Mayfair para as sem-teto, Venda do Século na Oxford Street, Jardinagem de Guerrilha - apenas parcialmente interrompidas por forte policiamento e chuva torrencial. Mas mesmo as mais militantes das militantes - eco-sabotadoras do Earth Liberation Front - escrupulosamente evitam fazer qualquer coisa que cause dano a seres humanos (ou animais, aliás). É este embaralhamento das categorias convencionais que de tal forma arremessa as forças da ordem e as deixa desesperadas para trazer as coisas de volta ao território familiar (simples violência): mesmo ao ponto, como em Gênova, de encorajar hooligans fascistas a criar um motim como desculpa para usar força esmagadora contra todas as outras pessoas.

Poder-se-ia traçar estas formas de ação até as acrobacias e teatro de guerrilha dos Yippies ou 'Índias metropolitanas' italianas nos anos sessenta, as batalhas de squatters na Alemanha ou na Itália nos anos setenta e oitenta, mesmo à resistência campesina à expansão do aeroporto de Tóquio. Mas parece-me que, aqui também, as origens realmente cruciais jazem com os Zapatistas e outros movimentos no Sul global. De muitas maneiras, o Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN) representa uma tentativa, por parte de pessoas a quem sempre foi negado o direito a resistência civil não-violenta, de tomá-lo; essencialmente, chamar o blefe do neoliberalismo e de suas pretensões à democratização e à cessão de poder à 'sociedade civil'. É, como suas comandantes dizem, um exército que aspira não ser mais um exército (é algo como um segredo aberto que, durante pelo menos os último cinco anos, elas não têm sequer carregado armas de verdade). Como Marcos explica sua conversão a partir de táticas padrão de guerrilha:

Pensamos que as pessoas ou não prestariam atenção em nós, ou se juntariam a nós para lutar. Mas elas não reagiram de nenhuma dessas duas maneiras. Acabou que essas pessoas, que eram milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares, talvez milhões, não queriam se levantar conosco, mas... tampouco elas queriam que fôssemos aniquiladas. Elas queriam que dialogássemos. Isto quebrou completamente nosso esquema e acabou definindo o zapatismo, o neo-zapatismo.4

Agora o ELZN é o tipo de exército que organiza 'invasões' de bases militares mexicanas em que centenas de rebeldes se esgueiram para dentro completamente desarmadas para gritar e tentar envergonhar os solados residentes. Similarmente, ações em massa por parte do Movimento dos Trabalhadores sem Terra ganham uma enorme autoridade moral no Brasil ao reocupar terras não utilizadas de forma totalmente não-violenta. Em ambos os casos, está bem claro que se as mesmas pessoas tivessem tentado a mesma coisa vinte anos atrás, elas teriam sido simplesmente alvejadas.

Anarquia e paz


Como quer que você escolha traçar suas origens, essas novas táticas estão perfeitamente de acordo com a inspiração anarquista geral do movimento, que é menos sobre tomar o poder do estado que sobre expôr, deslegitimar e desmontar mecanismos de governo enquanto ganha espaços sempre maiores de autonomia. A coisa crítica, no entanto, é que tudo isso só é possível em uma atmosfera geral de paz. Na verdade, me parece que essas são as apostas finais da luta no momento: uma que pode bem determinar a direção geral do século XXI. Deveríamos lembrar que durante o final do século XIX e começo do XX, quando a maioria dos partidos Marxistas estava rapidamente se tornando social democrata reformista, o anarquismo e o anarco-sindicalismo eram o centro da esquerda revolucionária.5 A situação só mudou realmente com a Primeira Guerra Mundia e a Revolução Russa. Foi o sucesso Bolchevique, normalmente nos dizem, que levou a declínio do anarquismo - com a gloriosa exceção da Espanha - e catapultou o Comunismo à tona. Mas me parece que se poderia olhar para isto de outra maneira.

No final do século XIX a maioria das pessoas honestamente acreditavam que a guerra entre potências industrializadas estava se tornando obsoleta; aventuras coloniais eram uma constante, mas uma guerra entre França e Inglaterra, em solo francês ou inglês, parecia tão impensável quando o pareceria hoje. Por volta de 1900, mesmo o uso de passaportes era considerado um barbarismo antiquado. O 'pequeno século XX' foi, em contraste, provavelmente o mais violento da história humana, quase inteiramente preocupado ou em lutar guerras mundiais ou preparando-se para elas. Pouco surpreendente, então, que o anarquismo rapidamente veio a parecer irrealista, se a medida última da efetividade política havia se tornado a habilidade de manter enormes máquinas mecânicas de matar. Esta é uma coisa em que anarquistas, por definição, nunca podem ser boas. Tampouco é surpreendente que partidos Marxistas - que foram apenas bons demais nisso - parecessem eminentemente práticos e realistas em comparação. Ao passo que, no momento em que a Guerra Fria acabou e a guerra entre potências industrializadas novamente pareceu impensável, o anarquismo reapareceu exatamente onde estivera no final do século XIX, como um movimento internacional no próprio centro da esquerda revolucionária.

Se isso está correto, fica mais claro quais são as apostas últimas da atual mobilização 'anti-terrorista'. No curto prazo, as coisas de fato parecem muito assustadoras. Governos que estavam lutando desesperadamente por alguma maneira de convencer o público de que nós eramos terroristas, mesmo antes do 11 de Setembro, agora sentem que receberam carta branca; há pouca dúvida de que muitas boas pessoas estão prestes a sofrer uma terrível repressão. Mas no longo prazo, um retorno ao níveis de violência do século XX é simplesmente impossível. Os ataques de 11 de Setembro foram claramente um pouco de um golpe de sorte (o primeiro esquema terrorista descontroladamente ambicioso na história que realmente funcionou); a propagação de armas nucleares está garantindo que porções cada vez maiores do globo estarão, para todos os propósitos práticos, fora dos limites da guerra convencional. E se a guerra é a saúde do estado, os prospectos para organização de estilo anarquista só podem estar melhorando.

Praticando a democracia direta


Uma reclamação constante sobre o movimento de globalização na impressa progressista é que, embora taticamente brilhante, ele carece de qualquer tema central ou ideologia coerente. (Isto parece ser o equivalente de esquerda da reclamação da mídia corporativa de que somos um bando de crianças burras reunindo um conjunto de causas completamente distintas - libertem Mumia, calote na dívida, salvem as florestas primárias.) Uma outra linha de ataque é que o movimento sofre de uma oposição genérica a todas as formas de estrutura ou organização. É angustiante que, dois anos após Seattle, eu tenha que escrever isso, mas alguém obviamente deveria: na América do Norte, em especial, este é um movimento sobre reinventar a democracia. Ele não é oposto à organização. Ele é sobre criar novas formas de organização. Ele não carece de ideologia. Essas novas formas de organização são sua ideologia. É sobre criar e adotar redes horizontais em vez de estruturas hierárquicas como estados, partidos ou corporações; redes embasadas em princípios de democracia de consenso, descentralizada e não-hierárquica. Em última análise, ele aspira ser muito mais do que isso porque, em última análise, ele aspira reinventar a vida cotidiana como um todo. Mas, ao contrário de muitas formas de radicalismo, ele primeiro se organizou na esfera política - principalmente porque este era um território que os poderes constituídos (que moveram toda sua artilharia pesada para a econômica) haviam abandonado em grande parte.

Ao longo da última década, ativistas na América do Norte estiveram colocando uma enorme energia criativa em reinventar os próprios processos internos de seus grupos, para criar modelos viáveis do que uma democracia direta funcional poderia realmente se parecer. Nisto nós extraímos particularmente, como observei, de exemplos de fora da tradição ocidental, que quase invariavelmente dependem de algum processo de busca de consenso, em vez de voto majoritário. O resultado é um arsenal rico e crescente de instrumentos organizacionais - conselhos de vozes, grupos de afinidade, ferramentas de facilitação, fragmentações, aquáriosNT02, preocupações bloqueantes, observadoras independentes e assim por diante - todos objetivando criar formas de processo democrático que permitam que inciativas surjam de baixo e atinjam uma solidariedade máxima efetiva, sem silenciar vozes dissidentes, criar posições de liderança ou compelir ninguém a fazer qualquer coisa que não tenha livremente concordado em fazer.

A ideia básica do processo de consenso é que, em vez de votar, você tenta apresentar propostas aceitáveis para todo mundo - ou, pelo menos, não altamente desagradáveis a ninguém: primeiro declare a proposta, então solicite 'preocupações' e tente abordá-las. Frequentemente, nesse ponto, as pessoas no grupo irão propor 'emendas amigáveis' a serem adicionadas à proposta original ou de outra forma alterá-la, para garantir que as preocupações sejam abordadas. Aí, finalmente, quando você solicitar consenso, você pergunta se alguém quer 'bloquear' ou 'ficar de fora'. Ficar de fora é apenas dizer, 'eu mesma não estaria disposta a tomar parte nesta ação, mas eu não impediria ninguém mais de realizá-la'. Bloquear é uma maneira de dizer 'eu acho que isto viola os princípios ou propostas fundamentais de se estar no grupo'. Funciona como um veto: qualquer pessoa pode matar uma proposta completamente bloqueando-a - embora existam maneiras de disputar se um bloqueio é genuíno.

Existem diferentes tipos de grupos. Conselhos de vozes, por exemplo, são grandes assembleias que coordenam entre 'grupos de afinidade' menores. Eles são realizado mais frequentemente antes e durante ações diretas em larga escala como Seattle ou Quebec. Cada grupo de afinidade (que poderia ter entre 4 e 20 pessoas) seleciona uma 'voz', que tem o poder de falar por elas no grupo maior. Apenas as vozes podem tomar parte no processo de busca de consenso de fato no conselho, mas, antes de grandes decisões, elas se separam em grupos de afinidade novamente e cada grupo chega a um consenso sobre qual posição elas querem que sua voz assuma (não é tão difícil quando poderia soar). Fragmentações, por outro lado, são quando uma grande reunião temporariamente se separa em outras menores que focarão em tomar decisões ou gerar propostas que podem, então, serem apresentadas para aprovação ante todo o grupo quando ele voltar a se reunir. Ferramentas de facilitação são usadas para resolver problemas ou mover as coisas adiante se elas parecerem estar atolando. Você pode solicitar uma sessão de brainstorming, na qual as pessoas só podem apresentar ideias, mas não criticar as de outras pessoas; ou uma sondagem não-vinculante, em que as pessoas levantam suas mãos apenas para ver como todo mundo se sente quanto a uma proposta, em vez de para tomar uma decisão. Um aquário só seria usado se houvesse um diferença profunda de opinião: você pode pegar duas representantes para cada lado - um homem e uma mulher - e colocar as quatro para se sentarem no meio, todo o resto das pessoas em volta delas silenciosamente, e ver se as quatro não conseguem elaborar uma síntese ou compromisso juntas, que elas possam, então, apresentar como uma proposta para o grupo todo.

Política prefigurativa


Este é muito mais um trabalho em andamento, e criar uma cultura de democracia entre pessoas que tiveram pouca experiência com tais coisas é necessariamente um negócio doloroso e irregular, cheio de todos os tipos de tropeços e passos em falso, mas - como qualquer chefe de polícia que tenha nos enfrentado nas ruas pode atestar - a democracia direta desse tipo pode ser espantosamente efetiva. E é difícil encontrar alguém que tenha participado completamente de uma ação assim cujo senso de possibilidades humanas não tenha sido profundamente transformado como resultado. É uma coisa dizer, 'Outro mundo é possível'. É outra experienciá-lo, mesmo que momentaneamente. Talvez a melhor maneira de começar a pensar sobre essas organizações - a Direct Action Network, por exemplo - é vê-las como o oposto diametral dos grupos Marxistas sectários; ou, já que estamos falando disso, dos grupos Anarquistas sectários.6 Onde o 'partido' democrático-centralista coloca sua ênfase em alcançar um análise teórica completa e correta, exige uniformidade ideológica e tende a justapôr a visão de um futuro igualitário com formas extremamente autoritárias de organização no presente, essas abertamente buscam diversidade. O debate sempre foca em cursos particulares de ação; toma-­se como certo que ninguém jamais converterá qualquer outra pessoa inteiramente ao seu ponto de vista. O lema poderia ser, 'Se você está disposta a agir como uma anarquista agora, sua visão de longo prazo é essencialmente da sua conta'. O que parece apenas sensato: nenhuma de nós sabe quão longe estes princípios podem realmente nos levar, ou o que uma sociedade complexa embasada neles acabaria parecendo. Sua ideologia, então, é imanente nos princípios anti­-autoritários que subjazem sua prática, e um de seus princípios mais explícitos é que as coisas deveriam continuar desta forma.

Finalmente, eu gostaria de destrinchar algumas das questões que redes de ação direta levantam sobre alienação, e suas implicações mais amplas para a prática política. Por exemplo: por que é que, mesmo quando não há quase nenhuma outra base de pessoas para a política revolucionária em uma sociedade capitalista, o grupo com maior probabilidade de ser solidário com o seu projeto é constituído por artistas, músicos, escritoras e outras pessoas envolvidas em alguma forma de produção não-alienada? Certamente deve haver um link entre a real experiência de primeiro imaginar coisa e então trazê-las à existência, individual ou coletivamente, e a capacidade de vislumbrar alternativas sociais - particularmente a possibilidade de uma sociedade em si tendo como premissa formas menos alienadas de criatividade? Poder-se-ia mesmo sugerir que coalizões revolucionárias sempre tendem a depender de um tipo de aliança entre as menos alienadas da sociedade e suas mais oprimidas; revoluções reais, se poderia dizer então, tenderam a acontecer quando essas duas categorias mais amplamente se sobrepõem.

Isso ajudaria, pelo menos, a explicar por que quase sempre parecem ser camponesas e artesãs - ou ainda mais, antigas camponesas recém-proletarizadas e artesãs - que realmente derrubam regimes capitalistas; e não aquelas habituadas a gerações de trabalho assalariado. Também ajudaria a explicar a extraordinária importância das lutas dos povos indígenas no novo movimento: tais pessoas tendem a ser simultaneamente as pessoas menos alienadas e as mais oprimidas da terra. Agora que novas tecnologias de comunicação tornaram possível incluí-las em alianças globais revolucionárias, assim como a resistência e a revolta locais, é praticamente inevitável que elas desempenhem um papel profundamente inspirador.

NOTAS
[1] Algumas pessoas levam os princípio anarquistas de antissectarismo e caráter aberto tão a sério que as vezes ficam relutantes em se denominarem de 'anarquistas' por essa mesma razão.

[2] Lido pelo Subcomandante Marcos durante a sessão de fechamento da Primeira Intercontinental Encuentro, 3 August 1996: Our Word is Our Weapon: Selected Writings, Juana Ponce de León, ed., New York 2001.

[3] Ajudar a derrubá-la foi certamente uma das experiências mais emocionantes da vida deste autor.

[4] Entrevistado por Yvon LeBot, Subcomandante Marcos: El Sueño Zapatista, Barcelona 1997, pp. 214–5; Bill Weinberg, Homage to Chiapas, London 2000, p. 188.

[5] 'Entre 1905 e 1914, a esquerda Marxista tinha, na maioria dos países, estado à margem do movimento revolucionário, o corpo principal de Marxistas havia sido identificado com uma social democracia de facto não-revolucionária, enquanto o grosso da esquerda revolucionária era anarco-sindicalista, ou pelo menos muito mais próxima das idéias e do humor do anarco-sindicalismo do que do Marxismo clássico'. Eric Hobsbawm, ‘Bolshevism and the Anarchists’, Revolutionaries, New York 1973, p. 61.

[6] O que se poderia chamar de grupos anarquistas com A maiúsculo, tais como, digamos, a North East Federation of Anarchist Communists - cujos membros devem aceitar a Plataforma dos Comunistas Anarquistas estabelecida em 1926 por Nestor Makhno - de fato ainda existem, claro. Mas as anarquistas com a minúsculo são o locus real de dinamismo histórico agora.

[NT01] Wombles são criaturas peludas de nariz emproado que vivem em tocas onde visam ajudar o meio ambiente através da coleta e reciclagem de lixo de forma criativa. Wombles foram criados pela autora Elisabeth Beresford, e apareceram originalmente em uma série de romances infantis de 1968. Vide: https://en.wikipedia.org/wiki/The_Wombles
O nome do grupo anarquista a quem Graeber se refere é WOMBLES com referência a esses personagens: https://en.wikipedia.org/wiki/WOMBLES

[NT02] Um aquário é uma forma de diálogo que pode ser usada quando se discute temas dentro de grandes grupos. Quatro ou cinco cadeiras são colocadas no centro de círculos concêntricos, uma delas vazia: esse é o aquário. A partir daí as pessoas no aquário debatem enquanto as pessoas na audiência assistem. Quando alguém da audiência deseja participar do debate, se dirige à cadeira vazia, momento no qual alguém do aquário deve sair voluntariamente. A vantagem do aquário é que ele permite que todo o grupo para participar numa conversa. Várias pessoas podem participar da discussão. Vide: https://en.wikipedia.org/wiki/Fishbowl_(conversation)

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